Comer a luz em Cádiz
Ángel Léon parece uma criança deslumbrada com a sua própria descoberta. Desde o dia em que, enquanto pescava à noite, viu as lulas que levava brilharem por instantes no mar que começou a pensar como podia transpor esta luz para um prato e dá-la a comer aos seus clientes no restaurante Aponiente, em Cádiz.
Cinco anos e muitas experiências científicas e culinárias depois, a ideia tornou-se realidade. A partir deste mês, o Aponiente apresenta um menu baseado na luz do mar. Ou, para sermos mais exactos, na bioluminiscência, que é o fenómeno que faz com que um organismo vivo emita luz.
No palco do Fórum Gastronómico da Corunha, que decorreu de 12 a 14 deste mês, Ángel explica como, com a ajuda das universidades da Andaluzia que integram o Campus de Excelência Internacional do Mar, conseguiu identificar dois componentes, a luciferasa, uma enzima, e a luciferina, uma proteína, que estão na origem da luz do mar. Descobriram depois um plâncton que se torna luminescente e um caranguejo que o come, produzindo-se nele o mesmo efeito. Secando o plâncton ou os caranguejos obtém-se um pó que, quando se junta água, ganha luz.
No Fórum, com as luzes todas acesas, é difícil mostrar o efeito, por isso Ángel vai para dentro de uma furgoneta completamente às escuras, acompanhado pelo operador de câmara, e junta água ao pó num recipiente que, de repente, se ilumina de uma intensa luz azul.
Outro tema que tem fascinado o chef do Aponiente é o da cor. Partindo de um quadro em que se vê um cão na praia com a boca tingida de púrpura, foi à procura dessa cor e encontrou-a na glândula branquial de um búzio. “Aí começou para nós um caminho maravilhoso que é o de contar como surgiu esta cor. O nosso objectivo é fazer um prato inteiro de cor púrpura.”
Mas, antes disso, Ángel só sonha com o momento em que apagará todas as luzes do Aponiente e os empregados entrarão na sala “com a luz mágica do mar” nos pratos.
Comer piranhas em Málaga
No Brasil, onde cresceu, Diego Gallegos comia muitas vezes peixe de rio. Quando se mudou para Espanha e começou a interessar-se por cozinha pensou que gostaria de trabalhar com peixes de água doce. Mas era complicado. “Aqui não se pode trabalhar com peixes selvagens de água doce porque os rios não estão controlados.”
A solução que encontrou foi criar os seus próprios peixes e hoje tem uma piscina com capacidade para dez mil litros de água onde produz meia tonelada de peixe por mês, entre tilápias, bagres, piranhas (sobretudo o “primo” destas, o pacu, que não é carnívoro), lagostins, enguias. “Estamos a tentar trazer mais, mas é difícil conseguir que se reproduzam, algumas espécies não se adaptam bem”, conta Diego no final da sua apresentação no Fórum Gastronómico da Catalunha.
Acabou de mostrar algumas das receitas do seu restaurante, Sollo, em Málaga, projecto em que se lançou depois de ter passado por um estágio no D.O.M, de Alex Atala, em São Paulo. Quando inaugurou o Sollo, em 2015, destacou-se imediatamente pelo trabalho com esturjão e o respectivo caviar, proveniente de Riofrio, Granada, mas agora começou a voltar-se também para outros peixes. O sucesso do projecto foi tão grande que abriu portas em Março e em Novembro recebeu uma estrela Michelin.
Na forma como prepara os peixes usa influências de outras cozinhas. “A minha avó era peruana, de origem índia”, diz, explicando como sempre se habituou a usar uma série de ingredientes e até receitas, o que o leva a criar pratos como ramen de bigodes e pele de bagre ou chupe (prato típico da cozinha sul-americana) de piranha.
Conta que muita gente tem dúvidas sobre a origem do peixe, por isso, quem quiser ver onde ele é criado só tem que chegar ao Sollo entre as 19h30 e as 20h30 e pedir para visitar a piscina. “O nosso trabalho é fazer com que estes peixes sejam conhecidos e as pessoas comecem a usá-los mais.”
Beber a terra na Galiza
Josep Roca — um dos três irmãos Roca e o sommelier do El Celler de Can Roca, em Girona, o segundo melhor restaurante do mundo na lista do The World’s 50 Best Restaurants — é um apaixonado por Riesling.
Convidado a fazer uma prova de vinhos no Fórum Gastronómico da Corunha, escolheu comparar duas castas, o Riesling, “a dama branca”, e o Albariño da Galiza. São duas castas que lhe despertam um fascínio particular, mas, seja qual for o tema, uma prova dirigida por Josep Roca é um acontecimento
Fala num tom pausado para apresentar o seu restaurante e agradecer várias vezes “a generosidade dos [seus] irmãos” que lhe permite lançar-se em aventuras em torno do vinho que passam não só pela constituição de uma extraordinária garrafeira (que ele apresenta numa visita pessoal com os clientes interessados) como na criação de pratos a partir dos aromas e componentes do vinho.
“Somos transmissores e narradores de pratos e de vinhos”, diz, explicando como um vinho os pode inspirar “desde os aromas primários da flor até à serenidade e ao silêncio”. E, no meio de tantas castas, o Riesling é, para Josep Roca, aquela que “sabe ler a terra melhor do que nenhuma outra”, revelando-se depois tanto em vinhos de “juventude estridente” como na “serenidade absoluta” dos vinhos envelhecidos.
Há uma poesia permanente na forma como Roca descreve os vinhos que vamos provando, os Riesling primeiro, contando um pouco da história de cada família produtora e, aqui e ali, demorando-se em alguma característica da personalidade do enólogo que acredita encontrar também no vinho. Fala das notas aromáticas e da percentagem de álcool mas quase não damos por isso. Entrar por aí, diz, “não é prazer, é dissecção, e não precisamos disso”.
Fala depois do Albariño da Galiza, cuja produção tem vindo a crescer muito, mas alerta para a “fragilidade do êxito”. Tendo visto o El Celler ser reconhecido como o melhor restaurante do mundo, e estando actualmente em segundo lugar, Josep considera-se “uma autoridade para falar dos perigos do êxito” e avisa que “Rias Baixas tornou-se o Albariño e isso não é bom” porque “uma região não é uma casta”.
Apresenta, por exemplo, o Albariño do Ferreiro, “um vinho reflexivo, com os cítricos a desenvolver-se até essa parte de pele seca, de concentração”, o Leirana, “irreverência vestida de seda, um vinho que pede a nossa saliva e expressa com contundência que o Albariño pode ser um vinho de solo, de paisagem,” ou a “efervescência criativa” do Albamar.
Por fim, deixa-nos com um Pazo de Señorans de 2001, prova de que a casta “pode evoluir muito bem”, um vinho “que no início cresceu para cima e agora cresce para dentro”. E termina falando da necessidade de se “reconhecer mais a riqueza do subsolo” e essa capacidade que o vinho tem de falar de uma paisagem. “Não é preciso ser o melhor do mundo”, diz. “É preciso ser-se autêntico no mundo.”
O polvo que ganha concursos
É um dos momentos mais animados do Fórum Gastronómico da Corunha: o concurso do melhor polvo à feira, a tradição gastronómica que nasceu nas feiras desta província espanhola e que se tornou um ícone da região. Os “pulpeiros” e “pulpeiras” que concorrem alinham-se em frente ao júri (que este ano incluiu a autora deste texto) e preparam os respectivos polvos. Têm uma panela de água a ferver onde colocam os animais e deixam-nos cozer, tirando-os de vez em quando e exibindo-os orgulhosamente para a assistência ver — chama-se a isto “assustar” o polvo.
O tamanho do bicho não é importante, o que importa é que se consiga o ponto de cozedura certo para que fique macio sem ficar mole. Alguns dos concorrentes contam que pertencem a famílias com tradição na confecção desta iguaria e que já são a segunda, terceira ou até quarta geração a prepará-la.
Uma das terras que mais tradição tem é Carvalhinho e é daí que vêm alguns concorrentes. Há quem garanta que o melhor polvo à feira vem de lá — aliás, diz-se que é nas localidades do interior que melhor se trabalha esta técnica, talvez porque no litoral se utiliza mais o peixe fresco.
Quando o animal está pronto, desliga-se o lume, deixa-se o polvo repousar mais alguns minutos dentro de água e por fim retira-se, corta-se em rodelas (é importante também que estas não sejam nem demasiado pequenas nem demasiado grandes) e tempera-se com sal, azeite e pimentão.
É simples e não há muito que possa distinguir os concorrentes a não ser, de facto, o ponto de cozedura. Este ano a vencedora foi a única “pulpeira” no meio de vários “pulpeiros”. Vinda da Casa Pedreiro, de Lugo, Vanessa Ferreiro, loira e vestida de cor-de-rosa, confessava no final, entre grandes sorrisos, que tinha estado muito nervosa e dizia que talvez não haja mais mulheres porque é um trabalho pesado. Quanto a segredos de técnica, não tem. Diz apenas que não conta o tempo de lume e, para avaliar a consistência da cozedura, basta-lhe apertar o polvo com a mão.
Sobremesas com algas e legumes
Sergio Musso, de origem argentina, e Paco Cichón, espanhol, tinham um restaurante em Barcelona e mudaram-se recentemente para a Galiza, onde abriram o Ecléctic, a que chamam um “lar gastronómico” — “as pessoas vêm jantar a casa do chef” — no qual pretendem “assumir a cultura local e reinterpretá-la”.
Percebe-se que trabalharam muito o conceito, descrevem a sua cozinha como “migrante” e criam muitos pratos, numa espécie de voracidade por descobrir o que pode sair de uma combinação inesperada de ingredientes. Vieram ao Fórum Gastronómico da Corunha falar de sobremesas e de como lhes interessa a ideia de quebrar as fronteiras entre o doce e o salgado.
“As sobremesas sofreram uma revolução”, dizem, sublinhando que o que procuram é uma “complexidade gustativa”, antes de nos dar a provar um muito pouco doce bombom de algas. Apresentam esquemas para mostrar o que é a “manipulação do comensal”, que passa, entre outras coisas, por organizar os elementos que compõem o prato de maneira a que a pessoa comece pelos que lhe são mais familiares, e por isso mais “fáceis”, e só depois chegue àqueles que poderia ter rejeitado no início.
É preciso saber que “o cérebro cansa-se até do bom”, que “a priori rejeita o desconhecido” e que “há um limite para distinguir matizes”. Com base nestes princípios criam sobremesas como uma mousse com Queijo San Simón ou outra feita com a casca do cacau, produto que exploram de várias maneiras, entre as quais a confecção de uma cerveja artesanal.
O Ecléctic Lar Gastronómico é um espaço pequeno, decorado como a sala de uma casa de habitação, na Calle Oliva, na Corunha, e serve apenas menus de degustação (com pratos doces e salgados). Sergio e Paco prometem que o único critério essencial para as suas criações é o gosto. Por isso, quando cruzam chocolate com grelos numa sobremesa não querem apenas quebrar as tais fronteiras — querem, asseguram ambos, que fique delicioso.
A crítica que acabou dentro de uma sopa
Alexandre Silva ficou surpreendido quando soube que quem o ia apresentar no palco do auditório do Fórum Gastronómico da Corunha era o crítico gastronómico espanhol Carlos Maribona, que há um ano tinha estado no seu restaurante em Lisboa, o Loco, e tinha criticado alguns aspectos do projecto.
Muita coisa aconteceu desde então, incluindo a conquista de uma estrela Michelin pelo Loco, mas Alexandre resolveu brincar com o sucedido. Assim, o primeiro prato que apresentou foi uma “sopa de letras”, como as que comia quando era pequeno, com silarcas e caldo de mãos de vitela, só que aqui as “letras” vinham sob a forma de uma folha comestível, cortada em pedacinhos, com um texto: a crítica de Maribona. “Vamos comer a crítica”, disse Alexandre.
Foi uma boa maneira de quebrar o gelo — o crítico recebeu a provocação com um sorriso — e Alexandre continuou explicando que no Loco tentam “fugir ao clássico”, mas, no final, o que fazem “é comida”. Mostrou, como exemplo, um prato de falso caviar (feito com sementes de mostarda) e falsa vieira (com choco) ou um dashi feito com peixes secos da costa portuguesa, da muxama às ovas de polvo. E contou como dentro de poucos meses o Loco vai passar a ter uma sala separada destinada à investigação, à frente da qual estará Manuel Liebaut.
Um dia antes, também Henrique Sá Pessoa tinha subido ao palco do mesmo auditório para falar do Alma e mostrar o trabalho que o fez receber já a primeira estrela Michelin e o seu menu Costa a Costa. Explicou como no seu prato de polvo criou um molho romesco dando-lhe um toque pessoal, usando, entre outros ingredientes, avelãs e amêndoas.
Como tornar a nossa cozinha pessoal?, foi a pergunta que lançou, para de seguida demonstrar a forma como o faz, cruzando, por exemplo, influências de países por onde passou, como a cozinha asiática que aprendeu quando viveu na Austrália, ou a Espanha, que o vem inspirando de tal forma que acaba de abrir no Príncipe Real, em Lisboa, o Tapisco, um restaurante onde serve tapas e petiscos. Ou, noutro exemplo, como trabalhou um prato clássico português, o bacalhau à Brás, e o apresentou de uma forma diferente na sua “calçada à portuguesa”, dando um “toque conceptual à receita”.