Ainda a uma distância considerável, quando o avião inicia a fase descendente de aproximação à pista, vemos um edifício oval em aço e vidro com um toque futurista. Parece ter sido cortado ao meio, mas na verdade forma um complexo único com dois módulos (dois hangares), capricho arquitectónico que guarda os brinquedos de Dietrich Mateschitz, um às do marketing e mecenas excêntrico que criou uma bebida energética que se afirmou pelo apoio a desportos e actividades “fora da caixa”.
Salzburgo, na Áustria, é uma cidade relativamente pequena (é a quarta em dimensão, depois de Viena, Graz e Linz, com cerca de 150 mil habitantes) e o seu aeroporto lembra uma aerogare de província. Quando o autocarro recolhe os passageiros no avião quase apetece perguntar se pode levar-nos directamente ao Hangar 7, no outro lado da pista. Não é possível, claro. Mateschitz pode ser quase o dono “daquilo tudo”, mas há procedimentos alfandegários e de segurança a cumprir.
Estamos na cidade natal de Mozart, a convite da Red Bull, para o almoço de abertura do Belcanto, que se apresenta durante o mês de Abril no restaurante deste espaço. A gastronomia é uma das paixões do fundador da marca e o restaurante Ikarus (duas estrelas Michelin) foi idealizado pelo lendário chef alemão Eckart Witzigmann para receber todos os meses um ou mais chefs de renome mundial, independentemente do estilo de cozinha. Esta é uma das quatro componentes do projecto Hangar 7. As outras são a arquitectura, neste caso, o próprio edifício futurista do arquitecto Volkmar Burgstaller, uma estrutura em forma de asa de avião, com 380 toneladas de vidro e 1200 toneladas de aço; a arte – o edifício é palco de exposições regulares, além de albergar a colecção do proprietário; e a quarta componente, a razão principal pela qual os edifícios foram construídos, a de abrigo à mítica frota de aviões dos Flying Bulls, um grupo de apaixonados por aviões e helicópteros históricos, que marcam presença regularmente em inúmeros festivais de aviação.
A colecção e o estado de manutenção dos brinquedos voadores expostos no Hangar 7 impressiona mesmo quem não tem uma paixão particular por aviões e afins. Inclui, por exemplo, o famoso bombardeiro B-25J dos anos de 1940, um Lockheed P-38 Lightning, um Chance Vought F4U-4 “Corsair”, além de helicópteros como um BO 105s, ou um Bell Cobra. Além dos aviões, o edifício serve ainda de exposição a carros e motos de corrida (Fórmula 1, Nascar, Dakar...) e outros objectos ligados ao património aventureiro da marca. Um dos núcleos mais interessantes é o dedicado aos feitos do austríaco Felix Baumgartner, o primeiro homem cruzar o Canal da Mancha com uma asa de carbono (em 2003) e o primeiro humano a atravessar a barreira do som em queda livre, sem o auxílio de uma máquina. Toda as etapas relacionadas com esta sua epopeia, realizada em 2010, como a preparação (que durou sete meses), os ensaios, a ascensão numa cápsula (exposta no local) puxada por um balão, bem como o salto, são relatados ao pormenor.
Já o Hangar 8, a que tivemos acesso (está vedado ao público), é o local onde se faz a manutenção de todos aqueles objectos voadores identificados. A visita decorre num sábado e a actividade na oficina está parada. Ainda assim, dá para perceber que andam de volta do DC-6B, que em tempos pertenceu a Tito, presidente da Jugoslávia. O avião foi resgatado em África, quase em estado de sucata, e está prestes a ganhar nova vida em Salzburgo.
Avillez dá-lhes asas
Em Agosto do ano passado, José Avillez estava tranquilo em Lisboa — se é que tranquilo é uma palavra que se possa aplicar a quem ultimamente anuncia um novo restaurante a cada dois meses — quando lhe chegou às mãos um embrulho que incluía um livro com o portefólio dos chefs que passaram pelo Ikarus e um convite para, em Abril, levar a cozinha do Belcanto ao restaurante do Hangar 7. “Tenho sempre muitos convites, a que digo que não, mas a este tinha que dizer que sim. Pelo trabalho que fazem, pelo nome que têm, pelos chefs que já cá estiveram”, conta-nos, quando visitamos os bastidores.
Avillez é o primeiro português a trabalhar em Portugal a passar pelo Hangar 7, mas com ligação ao país já tinham estado antes o “londrino” Nuno Mendes, os “algarvios” Hans Neuner (Ocean) e Dieter Koschina (Vila Joya) e o “lisboeta” Joachim Koerper (Eleven). É difícil mesmo evitar o name dropping. É que entre os “já cá estiveram” contam-se chefs como Massimo Bottura (Osteria Francescana, Modena), os irmãos Roca (El Celler de Can Roca, Girona), René Redzepi (Noma, Copenhaga), Alex Atala (D.O.M., São Paulo), Pascal Barbot (L’Astrance, Paris), Gastón Acurio (Astrid & Gastón, Lima), Virgílio Martinez (Central, Lima) e Grant Achatz (Alinea, Chicago), só para citar alguns dos mais importantes do mundo, entre os 130 nomes que tiveram residência mensal no Ikarus, desde que o restaurante abriu portas, em 2003.
Durante os nove meses que passaram entre o convite e o primeiro jantar em Salzburgo, Avillez recebeu, em Lisboa, o chef executivo da casa, Martin Klein, tendo os dois chegado ao desenho do menu com facilidade. Klein provou uma boa parte dos pratos do Belcanto e concordou de imediato com as propostas do seu colega português.
“Portugal tem uma identidade muito própria e é importante respeitá-la e mantê-la”, refere José Avillez, que escolheu alguns dos seus clássicos do Belcanto, como o “Mergulho no Mar” (robalo com algas e bivalves), a “Horta da Galinha dos Ovos de Ouro” (ovo, pão crocante e cogumelos), ou outros mais recentes, como os percebes com morangos verdes e as suas versões do cozido à portuguesa e do leitão da Bairrada.
O autor destas linhas já tinha tido a oportunidade de degustar estes pratos, por várias vezes, e quase se sentiu no Chiado ao prová-los de novo, agora em terras austríacas. Os snacks iniciais — dashi de milho, pele de frango crocante com abacate, “pedra” de mousse de fígado de bacalhau e cone de alga nori com tártaro de atum (que são os servidos actualmente no Belcanto) — revelaram toda a profundidade de sabor, sempre com aquele elemento extra, característico da cozinha do chef luso. O mesmo padrão se registou nos pratos, com excepção do robalo, que ficou uns furos abaixo do habitual (coincidência ou não, não era o da costa portuguesa que Avillez costuma utilizar). Com as propostas do Belcanto viajou, também, um conjunto de vinhos de pequenos e médios produtores nacionais de relevo, das regiões dos Vinhos Verdes ao Alentejo, passando pelo Douro e Bairrada. Fazem parte da harmonização (opcional) de vinhos que acompanha o menu.
Avillez chegou uns dias antes a Salzburgo, na companhia do chef executivo do Belcanto, David Jesus, para supervisionar os primeiros serviços. Ambos esperavam uma equipa rodada e competente e por isso não estranharam a afinação demonstrada logo no primeiro almoço. A dupla iria regressar a Lisboa após os primeiros dias de Abril, não estando previsto o regresso ao Hangar 7 até ao final do projecto. Porém, além da competência da equipa residente, a dupla pode confiar, também, em Miguel Henriques, cozinheiro português, há nove anos no Ikarus. Actualmente na função de chef tournant, um dos postos avançados da brigada de cozinha, este antigo electricista que saiu de Portugal com 21 anos em busca de uma vida melhor, diz-nos, mais tarde, que para ele ter um restaurante e um chef português por ali “é um sonho” e que todo o processo tem sido muito especial.
“Aprendi coisas novas com produtos do meu país. O José chegou muito organizado com uma ideia do que queria e fez um trabalho sem complicações.” Quanto ao sucesso do menu do Belcanto no Ikarus, Avillez pode ficar sossegado. “Começámos bem”, refere Miguel Henriques, “e vamos manter este nível até fim”. “Os nossos clientes adoram o menu. Só temos tido notas positivas.”
Hangar 7
Aeroporto de Salzburgo, abre diariamente das 9h às 22h e tem entrada livre.
Horário do restaurante Ikarus: de segunda a quarta, das 19h às 22h; de quinta a domingo, das 12 às 14h e das 19h às 22h.
A Fugas viajou a convite da Red Bull