Pedro Pena Bastos faz um gesto discreto, convidando-nos a passar para a cozinha. Abandonamos a mesa em que acabámos de jantar, deixando os outros distraídos a conversar, e seguimo-lo.
Abre armários para mostrar pequenas caixinhas alinhadas e organizadas por ordem alfabética com todo o tipo de ingredientes e especiarias, mostra-nos o frigorífico onde estão diferentes carnes a maturar, a zona de difícil acesso onde acontecem fermentações, a manteiga a envelhecer, os sacos de vácuo onde faz pickles de diferentes frutas e legumes.
Há todo um mundo de sabores em evolução escondido nesta cozinha. Aqui os alimentos estão vivos, transformam-se, ganham intensidades, profundidades, nuances. Quando chegarem aos pratos serão já outros — o próprio chef do restaurante do Esporão não sabe exactamente que resultados vai obter. É um trabalho de descoberta.
Foi entre muitos destes sabores (e outros que não estão aqui) que encontrou os equilíbrios certos para as harmonizações com os diferentes vinhos escolhidos para a Prova Anual de Vinhos Raros da Garrafeira Esporão. É o segundo ano que se realiza este encontro aberto a quem queira conhecer melhor a história dos Esporão através dos seus vinhos e, claro, o trabalho de Pedro Pena Bastos na cozinha desta herdade alentejana junto a Reguengos de Monsaraz.
Assim, na noite de dia 13 de Maio, quem não estava em Fátima, a festejar a vitória do Benfica ou colado aos ecrãs a ver Salvador Sobral a arrebatar o festival da Eurovisão, podia estar no Esporão a descobrir uma história que começou em 1973 quando José Roquette e Joaquim Bandeira adquiriram a propriedade.
“No início muitos acharam que a ideia de ter um château no Alentejo era megalómana”, conta Sandra Alves, enóloga responsável pelos brancos da casa e que conduziu a prova. E, de facto, as coisas começaram mal. Em 1974, a herdade, cuja história remonta ao século XIII, foi ocupada e só foi devolvida em 82. O primeiro vinho surge três anos depois, em 85 (só restam dez garrafas) — e logo aí começa, com um trabalho de Cargaleiro, a tradição de ter artistas a criar os rótulos.
Branco feito na talha
O jantar foi todo pensado por Pedro Pena Bastos a partir dos vinhos escolhidos por Sandra Alves, e em diálogo com ela. E começou com uma das novas experiências do Esporão, que ainda não está no mercado, um Talha Branco 2016, feito nas talhas de barro antigas que foram sendo adquiridas a quem ainda as mantinha para voltar a fazer vinho com a técnica usada pelos romanos — Sandra Alves descreve a experiência como “um exercício de humildade” da parte de um enólogo, que tem, num vinho assim, uma intervenção muito menor.
Na Adega dos Lagares, construída em 2014, há sete talhas revestidas com uma mistura de cera de abelha, resina de loureiro e azeite que é queimada para criar um vidrado. Aqui faz-se o Talha Tinto (vendido apenas na loja do Esporão) e, agora, o branco. Para acompanhar este vinho jovem, Pedro Pena Bastos fez um prato cheio de frescura: creme de cabeças de lagostim com granizado de brócolos e os animais servidos ao lado, marinados em sésamo e miso e salpicados de flor de brócolo.
Num desafio como este, explica o chef, “é mais fácil ter vinhos mais arrojados na boca, com variações a nível de sabor e de profundidade” como acontece com os vinhos mais antigos. E o que uma experiência como esta oferece é precisamente a possibilidade de provar vinhos dos quais já só existem poucas garrafas.
Foi muito interessante, por exemplo, a combinação entre o Esporão Reserva Branco de 1994, para o qual Pedro criou um prato com ostra de quatro anos, de Setúbal, acompanhada por várias texturas de couve, vinagrete de algas e caldo de couves fermentadas e cogumelos, num delicado jogo de sabores iodados e mais profundos que tocavam nos que o vinho tinha desenvolvido ao longo dos anos na garrafa.
Ao contrário do que é habitual num jantar, em que os pratos são concebidos primeiro e depois procuram-se os vinhos para eles, aqui o processo foi o inverso. No caso do Private Selection Branco 2005, por exemplo, Pedro notou-lhe um aroma a “churrasco ou sardinha assada” e fez um prato com salmonete e amêijoas, em que surgiram, por contraste, favinhas muito jovens, e bergamota, com as suas notas cítricas, tudo envolvido num dashi feito a partir das espinhas do salmonete grelhadas, pimenta verde, cebola, e ainda maçã verde.
Como Pedro trabalha com os produtos de cada estação, não tinha agora os sabores mais da terra característicos do Outono, que jogariam muito bem com as notas mais “castanhas” e caramelizadas dos vinhos antigos, mas contornou isso muito bem num prato como o que idealizou para o Esporão Reserva Tinto 1987: gamba violeta grelhada apenas de um lado, uma complexa sopa de pão cheia de sabor, um caldo de marisco, cebolinhas em pickle e caviar ibérico (de uma produção de esturjões das Astúrias).
As harmonizações prosseguiram com a carne — a faceira de porco preto com noz, alperce, alcachofras e funcho com o Torre do Esporão 2011 e a vazia de vaca de 80 dias a combinar com um 2 Castas de 2007. Até às sobremesas, em que outro vinho de 87, o Esporão Reserva Branco, voltou, acompanhado por nêsperas, capuchinhas, sabugueiro e o toque picante e caloroso da azeitona cordovil.
Despedimo-nos com um Licoroso H.E. (10 a 20 anos), a doçura a contrastar com a acidez delicada da pêra rocha, cereais tostados, a puxar pelas notas mais tostadas, e margaças. Para o ano, a garrafeira abrir-se-á novamente para descobrirmos outros vinhos que ajudem a contar a história do Esporão.