Uma caixa de madeira com terra bem escura, pequenas couves plantadas e um sistema de rega gota a gota, através de pequenos tubos pretos. Gil Fernandes quis “trazer o agricultor para a mesa” no jantar Young Chefs With Guts, que o Sangue na Guelra levou terça-feira ao Varanda Ritz Four Seasons (a iniciativa juntou vários head chefs emergentes ao longo de quatro jantares, a 14, 15, 16 e 22 de Maio).
A terra de Gil Fernandes era afinal um crumble salgado com tinta de choco e as mini couves lombardas foram regadas com caldo de cozido à portuguesa. A sua ligação à terra vem da infância na Lourinhã, onde ajudava o pai nos trabalhos da quinta. E da mãe, pasteleira, veio o hábito de estar à volta dos tachos. O sous-chef do Fortaleza do Guincho (uma estrela Michelin) é uma síntese desta herança, e algo mais que foi apanhando pelo caminho.
Aos 14 anos (tem 27) foi para a Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, de onde saiu para estagiar com o chef Luis Baena, no Tivoli, e depois com Dieter Koschina no Vila Joya (duas estrelas Michelin). Estava então preparado para “ir à aventura para Espanha”, onde trabalhou no restaurante de Martín Berasategui, e depois para a Holanda, onde esteve no De Librije (três estrelas), de Jonnie Boer. “Foi sem dúvida uma das pessoas que me levaram para outro nível.” Desde 2015 que está no Fortaleza, com o chef Miguel Rocha Vieira.
O ponto de partida para o jantar foi “respeitar ao máximo a cultura portuguesa”, quer através dos ingredientes – “todos os produtos que usei eram portugueses” (e este é também um dos princípios do encontro organizado pela Amuse Bouche) –, quer através dos pratos que levou para a mesa. Como por exemplo aquele que baptizou precisamente de Sangue na Guelra. “Fiz o arroz de enguia inspirado no arroz de lampreia, claro que com técnicas e apresentações diferentes.” Temos o sangue da enguia no arroz e temos as guelras fritas e desfeitas em pedacinhos estaladiços. “O objectivo era esse: cultura, tradição, produto top, sabor. Não pode faltar sabor.”
Jordan Bailey veio de propósito da Noruega, do Maaemo (com três estrelas), onde trabalha há dois anos. Esta foi a primeira vez que teve um menu por sua conta. “Sou head chef, mas tenho um chef acima de mim que toma as decisões finais. É bom ter a decisão final, como aconteceu neste jantar. Há padrões que temos de manter, mas este é o meu nome.”
Quis trazer também “um bocadinho da Noruega” para o jantar. “Em cada elemento havia uma espécie de influência norueguesa, quer fosse em produtos fermentados, quer em ingredientes autóctones, ou no camarão, usado nos snacks: os noruegueses comem imenso camarão, com maionese e pão, por isso peguei nisso.” Apresentou ainda, entre outros pratos, uma ostra ligeiramente escalfada em caldo de koji (um fungo que faz fermentação) de trigo sarraceno e balsâmico de maçã; e um tamboril grelhado pincelado com alho negro (“não cozinhava tamboril há seis anos!”), creme de mexilhão e leitelho de ervas marinhas.
Jordan Bailey achava que queria ser arquitecto até entrar numa cozinha profissional, tinha então 20 anos (tem agora 28). Começou a sua carreira em Inglaterra, num percurso que inclui o Sat Bains (duas estrelas). E trouxe dos ingleses o gosto pela comida de conforto. “No Maaemo só usamos ingredientes noruegueses e por isso em casa gosto de usar outras coisas, comida picante, dirty-food. Na Noruega não somos bons na comida de conforto, mas na Inglaterra sim, são muito muito bons. Por isso faço muitas vezes cozinha tradicional inglesa em casa”.
Em casa estava Carlos Cardoso. Quando Paulo Barata e Ana Músico o convidaram há três anos para participar no Sangue da Guelra (trabalhava então com Vincent Farges no Fortaleza do Guincho; antes tinha estado com José Avillez no Tavares), receberam dele a sua primeira “nega”. Ele explica porquê: “Na altura era mais novo [tem agora 34 anos]. Fazia muito a cozinha do chef e não tinha confiança suficiente para fazer um menu meu. O que é que eu ia fazer? A cozinha do meu chef? Não fazia sentido”. Depois veio para o Varanda, ao lado de Pascal Meynard, e “as coisas transformaram-se". "A carta é feita por mim e pela minha equipa. Há um chef executivo, que serve de filtro, mas há aqui um trabalho próprio. Já existe um caminho.”
Defende que “faz sentido criar um evento destes” para mostrar o papel fundamental de um “número dois”. “Os chefs estão sempre com grande destaque, e hoje em dia eles estão muito mais ausentes [das cozinhas]. O Paulo [Barata] apercebeu-se que os sous-chefs têm um papel imenso naquilo que se faz actualmente. Actualmente, temos sous-chefs muito poderosos, viajamos muito, a cozinha mudou imenso, temos outras influências. Isto é uma oportunidade para mostrar quem somos.”
Neste jantar, Carlos Cardoso mostrou que gosta de sabores frescos, especiarias e molhos picantes, como no primeiro snack que mandou para a mesa: peixe-galo com amêijoa, molho de shizou verde (erva da família da hortelã) e tabasco.
Peixe e marisco era um dado de partida e também isso o faz sentir em casa. “Sou de Cascais, sempre vivi naquela zona, e sou de uma família que cozinha muito peixe”. A isso junta-se a sua ascendência indiana, de Goa (a avó materna) e Moçambique (avô paterno), e as especiarias que vêm atrás. “Gosto da simplicidade dos produtos frescos e da época. E gosto de trazer um twist que à partida as pessoas não conheçam tanto”. Dá como exemplo a sua gamba rosa do Algarve, ostras, com yuzo, um citrino japonês, e sansho verde, uma especiaria japonesa também; ou o prato principal, de corvina com percebes: “Usei o myrth citronée, uma herbácea da família das citronelas, que é seca, e tem um sabor muito poderoso e muito fresco. Tinha também toranja macerada com estragão e cardamomo verde. Gosto muito de mandar vir um monte de especiarias e ver o que podemos fazer, trabalhar, testar”.
O que pretende mesmo é caminhar para a simplicidade. “Os cozinheiros hoje em dia têm muitas influências e querem mostrar muita coisa no mesmo prato: eu defendo três ou quatro elementos no máximo: simplicidade com muito sabor. Mas o mais difícil na cozinha é a simplicidade”.