Fugas - Viagens

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Rio, a cidade do Chico

Por Simone Duarte

"Cidade maravilhosa, És minha, O poente na espinha, Das tuas montanhas, Quase arromba a retina". É Rio de Janeiro, é todo o ano e para sempre assim, nas palavras e voz de Chico Buarque (em "Carioca"). Mas Simone Duarte nem poderia imaginar que seria com o manuscrito de "Amor de Perdição", de Camilo, nas mãos que terminaria o roteiro sugerido, especialmente para a Fugas, por Chico. "Gostosa, quentinha, tapioca, o pregão abre o dia", segue o cantor cantando.

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"Não quero ir de Maracanã, Corcovado, Jardim Botânico, essas coisas..." - escreve Francisco Buarque de Hollanda, Chico Buarque, quando a Fugas tenta desvelar o seu Rio, a sua lista de sítios imperdíveis para um português em férias no Rio de Janeiro. Depois de trocarmos alguns e-mails, chegamos à cidade com as sete "dicas" do compositor, cantor e escritor, prontos para percorrer o Rio com o Chico (ou quase...) 

Pista Cláudio Coutinho (Caminho do bem-te-vi) - Urca

Não é segredo para os cariocas que Chico Buarque gosta de fazer caminhadas. O andarilho Chico elege a Pista Cláudio Coutinho para o início do nosso roteiro. "Para caminhadas na Urca, o Caminho Cláudio Coutinho". 

Fica ao pé do Morro da Urca, na Praia Vermelha, a poucos metros da estação do bondinho do Pão de Açúcar. São 2500 metros (ida e volta) arborizados com uma vista deslumbrante à beira-mar. A pista asfaltada, também conhecida como caminho do bem-te-vi (um dos pássaros mais populares do Brasil que começa a cantar de manhã cedo), acompanha todo o costão do Morro do Pão de Açúcar. Lá também estão os acessos para escalar os Morros da Urca e do Pão de Açúcar (40 minutos e uma hora e meia de caminhada e escalada mas recomenda-se o acompanhamento de um guia especializado). 

O trilho tem tudo o que encanta um turista: a brisa do mar, a vista espetacular, o som dos bem-te-vi, e para quem quiser canções do Chico no Ipod a caminhar para "entrar no clima". Aberta das seis horas da manhã às seis da tarde, o acesso é gratuito e a segurança garantida, já que o trilho fica numa área militar. 

(Um esclarecimento para os mais curiosos: Cláudio Coutinho foi treinador da seleção brasileira de futebol, que ficou em terceiro lugar na Copa do Mundo de 1978 na Argentina. Foi ele quem levou o cooper para o Brasil depois de um encontro com Kenneth Cooper nos Estados Unidos. Morreu tragicamente afogado perto das Ilhas Cágarras, arquipélago próximo à Praia de Ipanema. ). 

Já que Chico Buarque o trouxe até aqui, aproveite para caminhar e conhecer a Urca, um dos bairros mais charmosos, reclusos e seguros do Rio de Janeiro. Termine o passeio, ao pôr do sol, na mureta em frente ao bar da Urca, a beber chopp e a saborear o pastel de camarão (para muitos cariocas, o melhor do Rio), com uma vista única da Baía de Guanabara.

#Pista Cláudio Coutinho - Praia Vermelha | Bar da Urca - Rua Cândido Gaffrée, 205 | Tel.: (55) 21 2295-8744)
Praias do Meio e Perigoso Barra de Guaratiba 

"Ah, para banho de mar, me lembrei agora das praias do Meio e Perigosinho, entre Grumari e Guaratiba" - escreve Chico Buarque." Mais um indício de que o compositor gosta mesmo de caminhadas. As praias do Meio e Perigoso ficam em Barra de Guaratiba, na zona oeste do Rio, e são as menos frequentadas da cidade. São praias quase selvagens de estreita faixa de areia, mar forte e onde só se chega através de trilhos ou de barco. A Barra de Guaratiba fica depois da Barra da Tijuca, e tem praias famosas pelo surf como a Prainha e o Grumari. As do Meio e Perigoso localizam-se na região da Restinga da Marambaia, uma reserva ambiental de beleza inigualável. Leva-se aproximadamente 50 minutos, uma hora para percorrer cada um dos trilhos de dificuldade média para o Perigoso e depois para a Praia do Meio. Recomenda-se o passeio com guias que conheçam bem os trilhos. A Ecomarambaia (www.ecomarambaia.com) oferece pacotes para no mínimo cinco pessoas, por 45 reais (aproximadamente 20 euros) por pessoa. O passeio dura mais ou menos três horas e meia. Para quem se hospedar no Relais da Marambaia, que foi inaugurado há um ano (ver texto nestas páginas ), o hotel oferece um passeio de barco às praias por 90 reais (aproximadamente 40 euros). 

#Ecomarambaia | ww.economarambaia.com

Restaurante Tia Palmira Barra de Guaratiba 

"Até agora só pensei no restaurante da Tia Palmira, em Guaratiba". Tia Palmira é uma tradição do bairro de Guaratiba conhecido pelos restaurantes rústicos que servem peixes e frutos do mar. A tia Palmira foi a primeira das "tias" (em geral cozinheiras, mulheres de pescadores) de Barra de Guaratiba. Começou nos anos 1970 a fazer o localmente conhecido PF (prato-feito) para surfistas numa época em que a Barra de Guaratiba era ainda menos frequentada. A fama espalhou-se e a Tia Palmira criou o menu de degustação. Foi pioneira e tornou-se a "tia" mais cara (hoje o menu custa 45 reais por pessoa) e uma referência para as famílias cariocas e turistas estrangeiros no fim-de-semana. Catarina Soares do Carmo, que trabalha com Tia Palmira desde o início, lembra que Chico Buarque vinha com toda a famíilia quando as filhas ainda eram pequenas. " Está vendo aquele caminho lá? - aponta - Tinha uma casa para lá. De vez em quando ainda aparece mas não como antes".

Com Tia Palmira afastada por motivos de saúde há uns dois anos (ainda mora em cima do restaurante), a experiência não é mais tão calorosa nem deliciosa. Para quem nunca foi, no entanto, ainda vale a pena degustar entradas de camarão frito, pastel de camarão, casquinha de siri e mais de dez pratos, como bobó, vatapá, moqueca de peixe, lulas refogadas e risoto de frutos do mar. Antes da entrada, é servido um caldinho de sururu. E de sobremesa um menu de doces caseiros. Quem quiser experimentar as outras tias, não é difícil encontrá-las. Uma alternativa é tentar o Bira, restaurante de um dos filhos de Palmira de Souza Leal. A casa do filho da Tia Palmira fica em frente da a Restinga da Marambaia. O menu é à la carte com pastel de camarão e siri, filé de robalo com arroz de camarão ou moqueca de camarão, ou ainda o arroz de frutos do mar.

#Restaurante Tia Palmira | Rua do Caminho do Souza, 18 Barra de Guaratiba | Tel.: (55) 21 2410 8169. Das 11h30 às 17h00; sábados e domingos até às 18h00. Fecha às segundas. 

#Bira | Estrada da Vendinha, 68A, Barra de Guaratiba | Tel.: (55) 21 2410 8304 | 12h/18h (quinta e sexta) 12h/20h (sáb. e dom)

Livraria Argumento Leblon 

"A livraria Argumento é bem legal, os livros que faltam eles mandam buscar. E nos fundos tem um café muito simpático chamado Severino". No início de uma tarde chuvosa seguimos a sugestão do escritor Chico Buarque e chegamos à Argumento, na Rua Dias Ferreira, no Leblon, zona sul do Rio. " O Chico vem muito aqui, ele mora no bairro, anda na praia, vem para cá, tomar água de coco no Severino, e sai. Ou aparece para comprar um presente para não sei quem", conta uma das sócias da Argumento, Laura Gasparian. Na era das "livrarias em série", onde o dono nunca aparece, Laura ajuda a encontrar títulos e parece disposta a um "bom papo". "A Argumento é uma livraria de bairro, está aqui há mais de 30 anos, então vem o avô, o pai, o filho."

Quando abriu, na década de 1970, a Argumento vendia livros de autores proibidos durante a ditadura militar, títulos que não existiam nas outras livrarias (de Paulo Freire, Fernando Henrique Cardoso a Érico Veríssimo e Chico Buarque). Até hoje, agora também com uma boa selecção de CD e DVD, é um ponto de referência e de encontro de intelectuais e artistas. 

O Leblon é passeio obrigatório para o turista, mesmo que às vezes (ou quase sempre?) os preços possam assustar. Os 700 metros de extensão da Rua Dias Ferreira, onde fica a Argumento, concentram ateliers e showrooms de estilistas badalados, mais de 15 restaurantes, quase todos da moda. Antiga Rua do Pau, primeira via aberta no Leblon quando o bairro ainda era um gigantesco areal, a Dias Ferreira hoje fervilha 24 horas por dia e tornou-se uma passarelle de artistas, músicos, escritores e empresários. Na rua não circulam autocarros. Apesar de todo o frisson, os seus sete quarteirões ainda preservam um quê de rua de bairro, o que a torna ainda mais atraente. 

#Livraria Argumento | Rua Dias Ferreira, 417 Leblon | Tel.: (55) 21 2239 5294 | http://www.livrariaargumento.com.br/| Aberta todos os dias das 9h00 à meia-noite e meia (só fecha nos dias 25 e 31 de Dezembro.)

A "Nova Lapa" - Gamboa 

"Vale a pena também um passeio na Gamboa, um bairro antigo perto do cais do porto." Quem vai a Gamboa hoje custa a acreditar que, entre os séculos XVIII e XIX, era um sítio à beira-mar, repleto de chácaras e palacetes da aristocracia (o futuro Visconde de Mauá entre eles). Apesar da aparência, é um dos bairros (juntamente com a Saúde) que mais se confunde com a história do Brasil colonial escravocrata. Era nesta região próxima ao porto da cidade que ficavam os trapiches com os estivadores e o mercado de escravos (Pedra do Sal). É também o berço do samba e onde nasceu a primeira favela carioca. Paisagem cinzenta e pobre entre a zona sul e a zona norte, a região cercada de morros foi esquecida pelos governos. Agora, toda a zona portuária está a ser revitalizada e a Gamboa começa a entrar na moda e ser chamada de "Nova Lapa". Às segundas tem a roda de samba na Pedra do Sal, que fica aos pés do Morro da Conceição.

O grupo Batuque na Cozinha é quem comanda as rodas da Pedra do Sal a partir das 19h00. Com sobrados restaurados, abertura de galerias de arte, exposições de arte contemporânea, eventos de rave, a região portuária começa a mudar aos poucos. Alguns armazéns vão virar um centro comercial a ser inaugurado para o Mundial de 2014. À noite, para as rodas de samba, recomenda-se ir e voltar de táxi. 

#Rodas de samba da Pedra do Sal | Batuque na Cozinha | Rua Argemiro Bulcão, 38, Largo João da Baiana, Gamboa (em frente ao Botequim Bodega do Sal. Basta perguntar onde é a Pedra do Sal, segundas 19h.) 

Canecão e Circo Voador - Botafogo e Lapa 

"Para shows, recomendo o Canecão, a melhor casa ruim (som ruim, comida ruim, acesso ruim, e é bom) do Brasil. E o Circo Voador, que não lhe fica muito atrás." 

Chico Buarque actuou 168 noites no Canecão. A primeira vez foi em 1971, a última em 2007. Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Ney Matogrosso, Simone, Rita Lee, Djavan, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gal Costa, Maria Bethania, Gilberto Gil... Difícil é encontrar algum grande nome da música popular brasileira (MPB) que não tenha passado pelo Canecão desde que a casa de espectáculos abriu em 1967. Não é exagero dizer que neste palco escreve-se a história da música popular brasileira (como lembra o site oficial do Canecão). Se uma viagem ao Rio coincidir com um espectáculo, o programa é obrigatório. A programação está em www.canecao.com.br. Já o Circo Voador, nasceu no Verão de 1982 na praia do Arpoador e logo teve sua tenda transferida para a Lapa (antes de a Lapa ressurgir na noite carioca). Marcou a geração dos anos 1980 ao lançar os até então desconhecidos Barão Vermelho e Cazuza, Blitz, Lobão, Kid Abelha... Artistas consagrados também passaram pelo Circo Voador, até ser fechado nos anos 1990. Em 2004, a Lapa, agora revitalizada, cheia de casas de samba e choro, voltou a contar com o Circo. 

#Canecão | Av. Venceslau Brás, 215 Botafogo | tel.: (55) 21 2105-2000 |

#Circo Voador | Rua dos Arcos, S/N Lapa | Tel.: (55) 21 2533-0354

Real Gabinete Português de Leitura - Centro 
Talvez não seja o acaso que faça o escritor Chico Buarque terminar o seu roteiro no Real Gabinete Português de Leitura. É uma jóia neo-manuelina no centro do Rio com um acervo de cerca de 400 mil livros. A história do Gabinete confunde-se com a história dos portugueses no Rio de Janeiro. Foi a primeira instituição fundada pelos portugueses depois da independência do Brasil. O objectivo dos 42 fundadores era emprestar livros aos transmontanos e minhotos que chegavam sem muita instrução. 

"Mas se pensarmos que em 1850 um dirigente do gabinete de leitura adquiriu da Casa de Setúbal um dos exemplares da edição do príncipe de Os Lusíadas, de 1572" - conta com entusiasmo o director do Gabinete, António Gomes da Costa, que chegou ao Rio de Janeiro da Póvoa de Varzim há quase 60 anos - "conclui-se que estes senhores tinham uma visão de futuro privilegiada e queriam formar no coração do Rio de Janeiro um templo de cultura portuguesa." E a sensação ao entrar no Gabinete (deixando para trás uma parte do centro do Rio maltratada) é, no mínimo, a de que se está num templo. A imponência do prédio e a grandeza do acervo são avassaladoras. "Tem gente que passa aqui e pensa que é uma igreja", sorri António Gomes da Costa.

Machado de Assis era um frequentador assíduo antes de tornar-se o grande escritor e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Presidiu a cinco sessões solenes da Academia no prédio. O manuscrito de uma de suas peças está aqui. As obras raras, como a de Machado ou a edição de 1572 de Os Lusíadas estão num cofre e só é possível ter-lhes acesso com autorização especial. Mas para a experiência da visita ser plena não se pode sair sem tocar e ler algumas linhas de um dos milhares de títulos à volta. 

Peço um conselho a António Gomes da Costa... "Ah!, se quem estiver a visitar for um camiliano, temos a segunda maior camiliana do mundo" - e explica que o acervo foi deixado por um comerciante português, apaixonado pela obra de Camilo Castelo Branco, que comprou muitas primeiras edições e até 200 cartas escritas ou endereçadas ao escritor. "Se for um queiroziano, temos uma das melhores colecções de Eça." 

O roteiro sugerido por Chico Buarque está quase no fim e sem que eu perceba o director do Gabinete me reserva uma surpresa. "Aqui está o manuscrito de Amor de Perdição", anuncia com uma certa solenidade na voz. "Quer ver?" Incrédula, pergunto: o manuscrito no Rio de Janeiro? "Sim, sim... Seu Orlando, por favor abra o cofre e traga o manuscrito". E assim me chega às mãos o delicado manuscrito. E com ele o ritual das luvas brancas e muito cuidado ao manusear cada página. Gomes da Costa chama a minha atenção para a ausência de rasuras. "Camilo escreveu este livro na prisão em 17, 18 dias, praticamente de uma vez só. Muito diferente dos manuscritos de Eça, onde se vêem muitas rasuras, rabiscos, chamadas de páginas." 

Termino o roteiro do Rio do Chico sem esbarrar em Chico Buarque mas a lembrar os traços da caligrafia firme de Camilo. A vida de viajante é assim: cheia de surpresas e de mais razões para um dia voltar.

#Real Gabinete de Leitura | Rua Luís de Camões, 30 Centro | Tel: (55) 21 2221-3138 |www.realgabinete.com.br | aberto de segunda a sexta-feira, das 9h00 às 18h00.

Como ir
A TAP voa para o Rio com preços a rondar os 1000 euros. A partir de Outubro, as tarifas baixam

A Fugas viajou a convite da TAP

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