A linha de eléctrico que liga Sintra à Praia das Maçãs deve ser a quintessência da experiência bucólica sobre carris. Viaja-se em peças de museu gloriosamente restauradas, que hoje circulam sobretudo pelo prazer de circular, ao ritmo do seu tempo de construção. Levam três quartos de hora a percorrer menos de 13 quilómetros de paisagem protegida entre a serra densamente florestada e o mar aberto, passando por quintas pitorescas e vilas tradicionais. O eléctrico é assim parte integrante, ou mesmo o epítome, da mística que consagrou Sintra como santuário do romantismo.
Os eléctricos podem ser os mesmos, a paisagem é que não. Apesar de protegida sob a figura do parque natural, tem sofrido muitas e radicais transfigurações desde que a ferrovia de bitola estreita nela se veio sinuosamente inscrever, nos inícios do século passado. A serra de Sintra é ainda uma das mais frondosas e bonitas de Portugal, mas está agora muito humanizada e mesmo terrivelmente degradada nalgumas áreas. Vendo as coisas em retrospectiva, é bem provável que o eclipse do manto vegetal de Sintra tenha começado justamente com o seu apogeu declarado, ou seja, a era romântica.
Essas e muitas outras leituras são avançadas ao longo de uma excursão fora de carreira do eléctrico de Sintra, este ano lançada no contexto do programa de Verão da rede Ciência Viva. É uma associação que faz todo o sentido, desde logo porque o Centro da Ciência Viva de Sintra funciona na antiga garagem dos eléctricos, contígua à respectiva oficina, que de futuro poderá ser museu e funcionar como seu complemento.
O eléctrico oferece os prazeres do costume, mas três biólogas promovidas a guias esmiúçam a paisagem, ensinando a olhar a serra de Sintra para além dos clichés turísticos. O programa chama-se Da Serra até ao mar e na estreia, a 29 de Julho passado, atingiu lotação esgotada, preenchendo os 30 lugares do eléctrico com uma plateia sobretudo composta por professores.
O carro sem janelas, de bancos corridos e rebatíveis em madeira, está parado na Ribeira, mesmo à porta do centro. Tem o número 7 e será conduzido por Valdemar Alves, responsável pela manutenção da frota sintrense. Mesmo antes do arranque, o nosso guarda-freio não hesita em falar de "património sobre carris" para introduzir um espólio constituído por 14 eléctricos comprados desde 1903 à companhia norte-americana J.G. Brill. São verdadeiras relíquias, em particular os três carros abertos, únicos hoje em circulação. Vem gente dos quatro cantos do mundo só para admirar as máquinas e saber como é andar numa delas.
A história da linha Sintra-Praia das Maçãs é uma declinação local da evolução dos transportes de lazer no século XX. Inaugurada em 1904, primeiro chamada Cintra ao Oceano e depois Sintra-Atlântico, atingiu o apogeu nos anos 30-40, quando chegou a Azenhas do Mar. Era a época em que meio mundo começava a gozar férias e ir a banhos, mas poucos ainda em veículo próprio. Depois, com a vulgarização do automóvel, o eléctrico foi perdendo terreno e a sua circulação no trajecto entre a serra e a praia veio mesmo a ser descontinuada em 1975.