Fugas - Viagens

Mercado de Galvany

Mercado de Galvany Luís Maio

Barcelona - A fantasia dos mercados

Por Luís Maio

Modernistas ou vanguardistas, de comes e bebes ou de não-importa-o-quê, são um espectáculo à parte. Para a Fugas, a rota dos mercados é uma das mais sugestivas e reveladoras modalidades de explorar a capital catalã

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Barcelona conta hoje com 40 mercados alimentares e mais seis especializados. A maioria foi edificada na passagem do século XIX para o XX com o propósito de servir a nova cidade projectada por Cerdà, na sequência do derrube da sua cintura amuralhada (1856). Alguns descendem de feiras ao ar livre, inclusive com raízes medievais, outros nasceram mais tarde e para servir novos espaços urbanos, sendo os mais jovens de 2003. É toda uma rede que continua a ampliar-se e a renovar-se, incluindo um par de intervenções mais radicais em recintos centenários.

Os mercados de Barcelona representam um caso de resistência único na Europa e, em particular, um contraste vincado em relação a Portugal, onde a invasão de novas formas de abastecimento tem sido recebida de braços abertos. Ora, a resistência aos avanços dos hiper e das grandes superfícies é tanto mais decisiva quanto os mercados tradicionais representam um património de valor inestimável. São preciosos em termos históricos e arquitectónicos, mas também no plano identitário, funcionando como lugares de encontro, onde toda uma sociedade se retrata (num mercado somos daqui, num "shopping" não somos de parte nenhuma). Por isso também, como tudo o que é ou passa por genuíno, os mercados estão a ser promovidos como atracções turísticas, no mesmo plano que os monumentos ou os museus. Claro que há compromissos e o comércio tradicional só se mantém apelativo na medida em que for capaz de dialogar com formas comerciais mais modernas. É esse saber fazer em que Barcelona se especializou. Passamos em revista os melhores exemplos.

Pérolas modernistas

La Boqueria é o mercado mais antigo em funcionamento em Barcelona, mas também o mais emblemático e turístico da cidade . Desde 1217 que se vendem frutas e legumes no local, sensivelmente a meio da Rambla; as vendedoras das frutas instalaram-se em quiosques em frente a partir do século XVI. Em meados do século XIX foi construído o edifício, ocupando um antigo convento de carmelitas -o que justifica a sua outra designação de Sant Josep -, a coberta modernista foi-lhe acrescentada em 1913. Desta época data o seu elemento mais emblemático, o portal decorado com vidros azuis e "trencadis" ao estilo de Gaudí, do alto do qual pende um antigo escudo da cidade.

Recentemente restaurado, o mercado de La Boqueria é hoje um íman para quem anda de passeio ou às compras na Rambla. Não admira, assim, que as suas bancas estejam repletas das mais preciosas iguarias, apresentadas de modo a assaltarem os sentidos de quem passa. Esplêndidas frutas mediterrânicas e doces regionais, prontos a serem consumidos no próprio local, convivem com lagostas e os melhores mariscos. É como uma versão gourmet de um mercado tradicional, uma aposta semelhante ao do londrino Borough Market, com o qual se encontra, de resto, geminado na rede de mercados europeus.

O mercado Sant Antoni é semelhante, com a diferença de servir o bairro e cair fora dos circuitos turísticos. Uma autenticidade reforçada pela circunstância de ainda não ter sido intervencionado, permanecendo tal como estava (ou quase) desde que abriu, em 1882. Outra notável construção modernista em ferro, foi edificado numa das antigas portas da cidade, quadrante urbano que na altura conhecia forte expansão demográfica. Havia que o abastecer de toda a espécie de bens de consumo, de modo que o interior foi destinado à venda de alimentos, mas suplementado no exterior de uma marquise metálica a toda a volta do quarteirão, para o comércio de roupas e afins. É um bocado negro e cavernoso, mas essa decrepitude só lhe realça o encanto centenário.

El Mercat de la Boqueria | La Rambla, 89, Ciutat Vella, metro linha 3, estação Liceu
El Mercat de Sant Antoni | Conte d'Urgell, Eixample, metro linha 2, estação Sant Antoni

À beira do delírio

Os mercados construídos nas primeiras décadas do século XX testemunham o auge da febre modernista que na altura incendiou Barcelona. Um exemplo privilegiado é o mercado de Galvany, inaugurado em 1927, em terrenos cedidos pelo conde com o mesmo nome, no bairro de Sarrià-Sant Gervasi. Um verdadeiro delírio com a sua coberta sustentada por 28 colunas de ferro, grande cúpula octogonal, metálica e revestida por lâminas de madeira, quatro fachadas com nove arcos interiores, mais os vitrais e mosaicos que as decoram. Situado no coração de uma das zonas residenciais mais nobres de Barcelona, ciclicamente restaurado e com parque de estacionamento privado, o mercado de Galvany distingue-se ainda pela excelência dos produtos alimentares em venda e correspondente clientela colunável. No mesmo estilo de fantasia modernista ao gosto dos inícios do século XX, os mercados de Sarrià (1911) e de Sants (1913) merecem igualmente a visita.

El Mercat de Galvany | Santaló, 65, Sarrià-Sant Gervasi, autocarro 14

Iluminações retrofuturistas

Primeiro mercado coberto da cidade, o de Santa Caterina nasceu no lugar do convento com o mesmo nome, demolido durante as insurreições populares de 1835. A edilidade decidiu então construir no lugar um mercado, uma das primeiras estruturas em ferro da cidade, inaugurada em 1484 com 208 locais de vendas de alimentos, certificando-o como o segundo maior da cidade, logo a seguir à Boqueria. A reabilitação mais recente foi confiada ao arquitecto Enric Miralles, que faleceu em 2000, vindo o seu projecto a ser concluído pela viúva Benedetta Tagliabue. A intervenção apurou-se tão radical que do edifício original pouco mais deixou de pé que aquilo a que a lei obriga, ou seja, as fachadas. Sobre elas foi edificada uma espectacular cobertura ondulada, forrada por um tapete de 325 mil peças de cerâmica, representando um mar matizado pela recordação de frutas e verduras.

O interior é de novo ocupado por um mercado alimentar, feito para servir a vizinhança popular, mas também com produtos mais seleccionados (e caros), que acenam à clientela cosmopolita que agora frequenta o Born. Para esta aponta também o restaurante Cozinhas de Santa Caterina, um "bistrot" requintadíssimo, integrado no recinto e gerido pela prestigiada cadeia Tragaluz. Outra adição recente é o Centro de Interpretação, na entrada do mercado, que exibe (e explica) os resultados das escavações ali realizadas, que permitiram descobrir vestígios da ocupação romana, da necrópole cristã do século IV e do convento dominicano edificado no século XIII. Esta combinação de reabilitação de um mercado histórico com a exposição das ruínas arqueológicas nas suas entranhas, ensaiada em Santa Caterina, é de algum modo o guião da intervenção em curso, um pouco mais abaixo, no mercado do Born.

O programa de Miralles terá igualmente inspirado a remodelação de outro mercado centenário, ainda mais próximo do rio -aquele que domina o antigo bairro de pescadores da Barceloneta (1884). Aqui, a marca do arquitecto catalão é sobretudo patente ao nível da grande pérgola futurista que domina a entrada principal, desde a reabertura em 2007. De cada lado dessa mesma entrada estão dois restaurantes envidraçados e com esplanada já na praça do poeta Boscà. Um deles, o Lluçanés, é o primeiro restaurante europeu distinguido com uma estrela Michelin.

El Mercat de Santa Caterina | Francesc Cambo, 16, Ciutat Vella, metro linha 4, estação Jaume I El Mercat de la Barceloneta | Pl. del poeta Boscà, Ciutat Vella, metro linha 4, estação Barceloneta

Les Halles, versão catalã

O mercado do Born remonta à Idade Média, quando era realizado ao ar livre, na praça aos pés da catedral de Santa Maria do Mar, onde também se celebravam torneios e procissões. Praticamente arrasado por Felipe V, na Guerra de Sucessão Espanhola (1700-1714), o bairro só renasceu verdadeiramente em finais do século XIX, quando se ergueu o mercado abastecedor de frutas e legumes, no extremo da praça oposto à catedral. Inaugurado em 1876, apenas dois anos depois de Les Halles, surgiu como uma extrapolação local desse figurino modernista francês. Todo construído em ferro e vidro, é composto por três naves, uma central e duas laterais, coroadas por uma cúpula octogonal de 30 metros de alçado. Um edifício elegantíssimo, mas que acabou por ser encerrado em 1971, quando a sua actividade foi transferida para o novo Mercabarna.

Os trabalhos de recuperação do que se esperava vir a ser o Covent Garden catalão deram entretanto lugar à descoberta de ruínas revelando o traçado urbano, anterior ao revés militar de 1714. A edilidade decidiu então (2001) conservar e exibir as ruínas, construindo por cima uma grande biblioteca, sustentada em obras de consolidação da estrutura metálica do mercado. Entretanto, as coisas complicaram-se e o programa da biblioteca deu mais recentemente lugar ao de um centro multiusos (exposições, museu, comércio) nas naves laterais. A nave central ficará aberta de modo a permitir admirar as ruínas através de duas passadeiras elevadas, que cruzarão o recinto à maneira de ruas cobertas. Para já, o restauro da extraordinária cerâmica vidrada dos telhados devolveu algum esplendor ao edifício.

El Mercat Del Born | Carrer Comerç, Ciutat Vella, metro linha 4, estação Jaume I

O estômago de Barcelona

E de onde vêm os alimentos à venda nos mercados da capital catalã? Todas as pistas ou quase apontam no sentido do Mercabarna, mais conhecido como "o estômago de Barcelona". Um mercado abastecedor que é uma verdadeira cidade dentro da cidade, ou melhor, à beira dela, ocupando 90 hectares de superfície numa encruzilhada entre o aeroporto, a gare ferroviária, o porto de contentores e o terminal TIR, a escassos dez quilómetros do centro antigo. É fácil lá chegar de táxi ou de autocarro, a hora de ponta diária é entre as quatro e as seis da manhã, e a de sexta costuma ser a mais movimentada da semana. Para quem for madrugador, apreciar sítios livres de turistas e sobretudo quiser experimentar o frenesim de um dos mercados abastecedores mais importantes do sul da Europa, o Mercabarna é o lugar para ir.

Reunidos nesta grande unidade alimentar, a partir os inícios nos anos 70, estão o matador, os mercados centrais de peixe, de flores, de frutas e hortaliças. São ao todo 800 empresas, que operam do norte de Itália até Valência, servindo 10 milhões de pessoas. O recinto é gigantesco, e mesmo após a saída das flores para outro lado (na sequência de um incêndio), a actividade que aqui se produz é impressionante. Um dos sectores mais frenéticos é o do peixe, que comercializa 100 mil toneladas de produtos por ano, dos quais 50 por cento são frescos. Está sediado num edifício de nave única que se alonga por 300 metros de comprimento, onde se alinham 80 lugares de venda e mais 14 de distribuição. Numa ponta são pilhas de caixotes de sardinha, na outra atuns e peixesespada que transbordam das bancadas, pelo meio sacos de todo o género de marisco, inclusive ainda vivo. Os odores são intensos, a actividade incessante e as curiosidades muitas, desde as máquinas de produção de gelo ao sistema de pagamento por selos.

Mercabarna | autocarro N1 (nocturno) desde as praças de Espanya e Sants

De botão a canhão

O mercado mais caótico, efervescente e original de Barcelona é, sem dúvida, a Fira de Bellcaire ou Encants. Começa por se distinguir dos outros, que são quase todos alimentares, porque nele se vende quase tudo menos isso, quatro vezes por semana (segundas, quartas, sextas e sábados). Mas o que acima disso o singulariza são os leilões que decorrem de manhãzinha (menos aos sábados), entre as 7h00 e as 9h00 da manhã, na esplanada da praça do mercado. Lotes das mais variadas mercadorias são disputados pelos cerca de 600 vendedores locais, para logo de seguida serem colocadas à venda ao público. Muitos descarregam os lotes directamente no espaço disponível no chão da praça, e se alguns ainda se dão ao trabalho de arrumar os restos para o dia a seguir, outros deixam-nos ali mesmo ficar para quem quiser aproveitar, quando a feira acaba, ao entardecer.

O leilão de tralha por atacado é o género de anacronismo que certifica este mercado como uma experiência única, quase insólita na era do comércio virtual. A Fira dos Encants é, na realidade, um caso de notável longevidade, uma vez que se trata de um dos mercados mais antigos da Europa. Os registos que o documentam remontam a 1355, quando se realizava junto das muralhas. Depois disso foi várias vezes trasladado, até aterrar na Praça das Glòries Catalanes há 80 anos (nas vésperas da Exposição Universal), quando se lhe juntou o mercado de Bellcaire, o que justifica a actual dupla designação.

Diz-se, porém, que não será a sua última morada, uma vez que a praça, antes na periferia da cidade, está agora a dois passos da Torre Agbar e da chiquérrima Diagonal Sul. Para já, no entanto, o jogo de contrastes entre o que basicamente é uma Feira da Ladra, onde boa parte dos vendedores e compradores são emigrantes, e a cidade do terceiro milénio é outro dos seus atractivos -e um perfeito epítome do mosaico humano que hoje define a capital catalã. De resto, Barcelona inteira frequenta os Encants, que chega a receber 100 mil visitantes semanais, sendo o sábado o dia em que naturalmente se regista maior afluência.

Esta popularidade resulta da diversidade de artigos em venda e da possibilidade de, no meio de muita tralha, se encontrar o objecto único que se procura uma vida inteira. Vai de electrodomésticos a filmes para adultos, de gangas a ferramentas de jardinagem, de bicicletas a todo um sortido de máquinas fora de prazo, onde encontrámos uma de venda de cigarros portugueses. Não é por acaso que o slogan que serve à associação de feirantes para publicitar os Encants é que é uma feira onde se encontra "desde um botão a um canhão". Bem mais específico, mas tão ou mais obrigatório para os amantes da cultura popular, é o Mercat Dominical de Sant Antoni. Durante a semana, como já vimos, a cintura exterior do mercado é ocupada por bancas de roupa, mas ao domingo o espaço é totalmente invadido por produtos culturais, fixados nos mais variados suportes. É, de resto, um mercado com um passado interventivo, uma vez que durante as suas duas primeiras décadas de vida serviu principalmente para traficar por baixo da mesa livros proibidos pelo franquismo. Alguns dos actuais vendedores são descendentes desses resistentes, especializados na venda de documentos de época, mas a maior parte comercializa coisas menos sérias, destinadas aos públicos mais jovens. De bandas desenhadas clássicas aos últimos mangas, dos DVD com as aventuras do Tintin aos exércitos dos Gormittis, dos vinis de metal às guerras em PC, há um pouco de tudo e sempre a preços mais baixos que nas lojas. Um mercado à margem do mercado vai, entretanto, correndo nos passeios à volta do recinto e é protagonizado por grandes concentrações de miúdos e dos respectivos pais, que conseguem passar uma manhã inteira a trocar cromos da bola com o resto da malta.

La Fira de Bellcaire ou Encants | Pl Glories Catalanes, 8, Eixample, metro linha 1, estação Glòries

Informações

Oficina de Turismo de Barcelona
Telefone: +34 932853834 (3, para a central de reservas de quartos)
http://www.barcelonaturisme.com/
www.bcn.es/mercatsmunicipals

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