O homem na fila da frente impõe ordem à sua volta. Indicador sobre o nariz, ele não emite o "shiu" prolongado que a exasperação normalmente produz, mas um "shiu" curto e autoritário, com a rispidez de um pai que não avisa duas vezes. Há algo de robótico nele se este fosse o lugar apropriado para fazer ornitologia, diríamos que é o tipo de pessoa que não tolera nada fora de sítio. Mas enquanto eu lanço um olhar reprovador bem português ao grupo que se mudou no intervalo para o que serão certamente melhores lugares do que os que tinha anteriormente (eu fizera o mesmo, mas estava a portar-me bem), o homem da fila da frente decidiu, em boa hora, agir.
"Shiu". Agradeço-lhe secretamente porque, pela primeira vez, depois de duas horas de dança que variaram entre o tipo de comédia musical que esperaria ver na Broadway mas não aqui (For the Love of Duke, ao som do jazz de Duke Ellington, e coreografado por Susan Stroman, a mulher que encenou e coreografou The Producers na Broadway e ganhou um número recorde de prémios Tony por isso) e uma parábola bíblica com cenários fauvistas (Prodigal Son, a última coreografia de George Balanchine para os Ballets Russes, datada de 1929), suspeito que a minha primeira experiência no New York City Ballet vai ser salva. Glass Pieces não é académico nem trata a dança como algo que tem de contar uma história (ou ser metafórica), apesar de ser coreografada por um homem que transitou da Broadway para o New York City Ballet, Jerome Robbins, que dirigiu West Side Story (1957) com Robert Wise. A peça em três partes, estreada em 1983, é acompanhada por música de Philip Glass, uma locomotiva de sons rítmicos repetitivos entrecruzados.
É também a única peça da tarde que tem uma estrela da companhia no elenco, como a ovação final e os comentários dos espectadores folheando o programa ("Diz aqui que Wendy Whelan é prima ballerina desde 1991...") atestam.
Wendy Whelan é a mais antiga das bailarinas principais do New York City Ballet. Na lógica do filme Cisne Negro de Darren Aronofsky, ela equivale menos à aspirante Nina (Natalie Portman) do que a Beth (Winona Ryder), a estrela do passado da companhia. Whelan escreveu sobre o filme no Daily Beast, dizendo que Aronofsky a contactara há uns anos, na fase de pesquisa. A companhia do filme nunca é nomeada, mas vários elementos do New York City Ballet colaboraram: o francês Benjamin Millepied, uma estrela ascendente, coreografou a dança no filme e é um dos actores secundários, Natalie Portman treinou com uma antiga bailarina da companhia. Os exteriores da sala de espectáculo que se vêem no filme são a sede do New York City Ballet, o David H.
Koch Theater, no Lincoln Center for the Performing Arts. É este auditório, com os seus 2568 lugares, que está praticamente completo numa tarde de sábado chuvosa no fim de Janeiro. Afinal, estamos em Nova Iorque.
Um dos programas disponíveis em Nova Iorque é visitar os locais onde um determinado filme ou série de televisão foi filmado. Mas é improvável que Cisne Negro algum dia venha a dar origem a uma visita guiada, como, digamos, Os Caça-Fantasmas, porque é um filme quase todo rodado em interiores, e subterrâneo. As imagens de exterior limitam-se ao metro, um plano do David H. Koch Theater e da fonte no centro da praça do Lincoln Center, que é, por si só, um ícone de Nova Iorque, como o Empire State Building, onde os turistas vêm tirar fotografias mesmo que nunca assistam aos espectáculos; a fonte figura em filmes como Manhattan de Woody Allen, Os Caça-Fantasmas, O Feitiço da Lua, ou The Producers, de Mel Brooks.
Cinema nos detalhes
Fazer um percurso pelo cenário de um filme é um dilema porque o real e a representação não coincidem necessariamente.
Durante anos, os espectadores da série Seinfeld familiarizaram-se com o Tom's Restaurant, no Upper West Side, onde Jerry Seinfeld e os seus amigos se reúnem. O plano de exterior do restaurante é um ritual repetido em quase todos os episódios, mas o interior é filmado em estúdio e qualquer turista que visite o verdadeiro Tom's Restaurant, com a expectativa do reconhecimento, verá que o espaço está organizado de forma diferente do que aparece na série (o que não impede o restaurante de ter as paredes repletas de retratos das personagens de Seinfeld).
Do mesmo modo, as cenas de estúdio que se vêem em Cisne Negro não foram filmadas no lugar que é suposto representarem o Lincoln Center mas no Performing Arts Center at the State University of New York Purchase, onde Bob Fosse já rodara All The Jazz. Mas, para todos os efeitos, é o Lincoln Center que vemos no filme, e o que Darren Aronofsky faz dele é um exercício de ousadia, porque converte um lugar de verniz institucional, formal, rígido e ordeiro, no que alguém comparou com o Castelo do Drácula: umas catacumbas do terror, um cabaret heterossexual alucinado.
O mesmo é válido para o New York City Ballet, companhia que representa a tradição, e que se dedica a interpretar o repertório do seu fundador, George Balanchine, como se fossem as sagradas escrituras.
Como outras bailarinas que falaram à imprensa americana sobre Cisne Negro, Wendy Whelan elogiou-o no Daily Beast como um retrato da tortura física e angústia psicológica que pendem sobre bailarinas aspirantes a um papel titular. Não é uma opinião unânime: a bailarina que me conduz numa visita guiada pelo Lincoln Center que estudou na Juilliard School, não quer nada com o ballet clássico e está a coreografar uma peça para uma das 1200 companhias de dança que existem em Nova Iorque considera o filme uma colecção de estereótipos. As bailarinas já nem sequer usam carrapitos como no filme, acima da nuca, diz ela, mas no alto da cabeça. O cinema está nos detalhes.
O Lincoln Center é o maior centro de artes performativas dos Estados Unidos (e "o mais importante do mundo", proclama, no seu site oficial). Foi pioneiro, inspirando sucedâneos noutras cidades, até mesmo fora do país, como o Barbican de Londres. Na base da sua fundação, em 1959, está o princípio do acesso democrático às artes, algo que perdura até hoje, na oferta de programação gratuita e nos preços dos espectáculos. Em anos recentes, a política cultural em Portugal viveu obcecada com a criação de novos públicos, o que soa como um bom programa de intenções, mas não parece ter sido muito consequente. Coisas muito práticas que uma instituição privada como o Lincoln Center (por onde passam quase cinco milhões de pessoas por ano) faz para captar público, incluindo o novo: é possível assistir a um espectáculo do New York City Ballet ou a uma ópera na Metropolitan Opera por 20-25 dólares (14 a 18 euros); por 15 (menos de 11 euros), os espectadores podem ver um ensaio corrido da Filarmónica de Nova Iorque, às terças-feiras de manhã; encontros informais com artistas, com uma componente educacional, visitas guiadas aos bastidores.
Arte para todos
As visitas guiadas têm lugar todos os dias, incluindo domingos, de manhã e à tarde. Imagino que seja uma prática introduzida na última década ou pouco mais, quando se generalizou em instituições do género, mas um artigo de 1964 da revista New Yorker que descubro mais tarde revela que é quase tão antiga quanto o próprio Lincoln Center, inaugurado em 1962.
Segundo o presidente do Lincoln Center à época, William Schuman, as visitas guiadas seriam uma oportunidade "para as pessoas de todas as partes dos Estados Unidos e do mundo inteiro conhecerem em primeira mão os grandes edifícios que compõem o centro, bem como o conceito do centro e o seu papel no mundo das artes performativas".
A visita dura cerca de uma hora e não é exaustiva. A única outra visitante é uma mulher de Long Island, o que é positivo porque permite fazer várias perguntas.
O ponto de encontro é o recém-inaugurado David Rubenstein Atrium, localizado entre a Broadway e Columbus Avenue (latitude: entre a West 62 e a 63 Street), frente à praça do Lincoln Center. É uma espécie de porta de entrada, com uma bilheteira onde é possível comprar bilhetes para qualquer espectáculo (até agora não existia uma bilheteira que concentrasse toda a programação do centro) e um mega café aberto todos os dias do ano, com jardins verticais, acesso gratuito à Internet, e espectáculos gratuitos todas as quintas-feiras à noite. Muitas pessoas trazem a sua própria refeição e vêm aqui comer, apesar dos preços acessíveis da cafetaria (óptimas sanduíches, óptima sopa).
"É o único sítio em Nova Iorque que pode frequentar no Inverno sem pagar um tostão", diz a nossa guia-bailarina, com um sorriso. Digo a mim mesma que ela parece a cantora americana Joanna Newsom.
E a visita guiada começa. Com um pouco de história: "A construção começou em 1959." "West Side Story foi filmado neste local, antes de existir o Lincoln Center." "O primeiro complexo de artes do mundo que tornou possível ver música, ópera e dança no mesmo sítio." "John Rockefeller acreditava que a arte devia ser para toda a gente e não apenas para os privilegiados." O industrial milionário foi um dos dinamizadores do projecto (e o primeiro presidente do Lincoln Center), juntamente com o urbanista Robert Moses. Mas o que os motivava, acima de tudo, era a ideia de renovar esta zona deprimida do West Side, onde se encontrava um bairro social, acreditando que o Lincoln Center seria uma espécie de íman de uma transformação em grande escala.
Há quem diga que o Lincoln Center nunca seria construído nos dias de hoje por causa de uma mudança de atitudes nos projectos de renovação urbana que obrigam à transferência de bairros inteiros. E também porque as instituições culturais de grandes áreas metropolitanas preferem ter uma identidade própria e ser mais activas numa escala menor, de bairro.
O Lincoln Center congrega 12 instituições, da ópera ao cinema, passando pelo teatro e jazz, e incluindo conservatórios como a Juilliard School ou a School of American Ballet, fundada por George Balanchine. A arquitectura é monumental e, apesar de cada edifício ter sido projectado por um arquitecto diferente, existe uma uniformidade de materiais e formas (o travertino importado de Itália, as colunas), sobretudo nos três teatros que formam a praça principal, em U, com a fonte no centro.
Alguns arquitectos e críticos de arquitectura simpatizam com o Lincoln Center como uma relíquia arquitectónica da Guerra Fria; a maioria vê nele uma Acrópole modernista, retrógada já à época da sua construção.
Dentro do David H. Koch Theater, a primeira paragem da visita guiada é frente a uma pintura de Jaspers Johns de 1964, chamada Numbers, com a marca de uma pegada. "É o pé de Merce Cunningham", explica a guia. "Todos os arquitectos tiveram rédea livre para escolher as obras de arte." Em 1973, a New Yorker escrevia que o State Theatre (entretanto rebaptizado David H. Koch Theater, em homenagem ao homem mais rico de Nova Iorque, que em 2008 fez um donativo de 100 milhões de dólares ao Lincoln Center) foi "provavelmente o primeiro teatro da história a ser concebido especialmente para satisfazer os desejos e necessidades de um coreógrafo". O arquitecto, Philip Johnson, disse: "Fi-lo para o George". Balanchine quis que a decoração evocasse uma caixa de jóias, daí o interior vermelho, o tecto pintado com ouro de 14 quilates, o candelabro cromado e as luzes imitando diamantes no auditório.
Em Fevereiro, o New York City Ballet repôs O Lago dos Cisnes, na versão de Peter Martins, director da companhia, estreada em 1996. É um dos poucos bailados que vendem, mas desta vez a procura foi tão intensa alegadamente, por causa do filme de Aronofsky que a companhia adicionou uma data extra. Houve rumores de que Natalie Portman iria aparecer.
Despedi-me da guia e fui até ao Lincoln Plaza Cinema, junto ao Lincoln Center (mas sem relação com o mesmo).
"Um bilhete para Cisne Negro, por favor."
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