Fugas - Viagens

Rui Gaudêncio

Barcelona entre chineses e cemitérios

Por Alexandra Prado Coelho

Há uma Barcelona solar que Woody Allen filmou em Vicky, Cristina, Barcelona. E há uma Barcelona negra, de imigrantes ilegais, que Iñarritu filmou em Biutiful. A Fugas foi encontrar uma cidade entre essas duas, fascinante, cheia de mistérios - e onde, como em Biutiful, às vezes sem sabermos temos mortos debaixo dos nossos pés.

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Barcelona pode ser uma cidade estranha. E isso é algo que já vamos descobrir. Mas primeiro temos um problema para resolver.

Estamos sentados num hotel design da Gran Via des Corts Catalanes, não muito longe do sítio onde numa tarde de 1926 Gaudí, o arquitecto da Sagrada Família e de todas as casas que por estes dias os turistas vêm ver a Barcelona, atravessou a estrada, mergulhado no mundo que existia dentro da sua cabeça, e não viu o eléctrico que o iria matar.

À nossa frente, Sergi Doria, jornalista e autor de dois guias literários de Barcelona, acaba de nos dizer: "O filme de [Alejandro González] Iñarritu não é sobre esta cidade, é sobre uma realidade social que existe em muitas cidades. Não é um filme sobre Barcelona." Sim, na verdade já sabíamos disso, mas não é uma boa notícia, dado que o pretexto para estarmos aqui é precisamente esse filme, Biutiful, que lançou Javier Bardem na corrida ao Óscar de Melhor Actor e se lançou a si próprio na corrida a Melhor Filme Estrangeiro (não ganhou nenhum dos prémios).

Mas, afinal, Doria vai dar-nos uma ajuda. "A verdade é que Uxbal, interpretado por Bardem, é uma personagem de Barcelona. Na realidade podia viver num bairro como o Raval." Seguimos então para o Raval em busca do espírito de Uxbal, esse homem a caminhar para a morte, numa espécie de via sacra, enquanto tenta ajudar imigrantes africanos e chineses ilegais (e ao mesmo tempo vive à custa deles), essa figura que fala com os mortos e sabe por que é que eles não descansam em paz, e que, ao mesmo tempo, quer salvar os filhos e a mulher, Marambra (Maricel Álvarez), sempre à beira do desequilíbrio, e que sabe que, no final, não os poderá salvar - nem a eles, nem aos imigrantes chineses, nem sequer a si próprio.

No Raval praticamente não se vêem chineses. E, no entanto, este foi, durante grande parte da vida da cidade, o Bairro Chino. Era, mesmo ali à saída das Ramblas, para o lado direito de quem desce, o bairro pobre, da prostituição, do tráfico de droga (que se agravou a partir dos anos 70, com a chegada da heroína), dos pequenos crimes, do submundo de Barcelona. Mas um dia limparam-no. Os Jogos Olímpicos iam chegar à cidade (foi em 1992), e Barcelona não podia apresentar o seu lado mais decadente aos milhares de turistas que se preparavam para a visitar.

Centenas de apartamentos pequenos e insalubres, em prédios cheios de humidade, foram demolidos, milhares de famílias foram realojadas, ruas inteiras desapareceram do mapa até o nome Bairro Chino desapareceu dos mapas. Hoje é o Raval, e onde antes havia ruas escuras e estreitas, cheias de mistérios e segredos, abre-se agora a Rambla del Raval, onde até já existem hotéis de design.

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