Uma vertigem na cidade
Somos transportados no tempo, nesta vertigem que toma conta da cidade, nas adegas, nos cafés, nas igrejas, nas ruas. Ela agarra as pessoas bem cedo, quando milhares de espectadores vão ocupando as cadeiras alugadas para ver passar os tronos. Continua depois com as conversas, as comidas e bebidas, o entusiasmo à passagem dos tronos, os cantores que, do meio da multidão, dirigem uma saeta (canção religiosa espanhola) à Virgem ou a Cristo, as aclamações espontâneas de "guapa, guapa, guapa!", os aplausos que irrompem.
As ruas perfumam-se de incenso, há emoção nos olhares, comentários sobre resultados de futebol, namorados apaixonados, risos e comoções. As flores de cada trono sinalizam o movimento, andando para cá e para lá. Algumas das ruas mais estreitas por onde passam as procissões têm a medida certa para que o trono não deite abaixo as varandas. Servem as ordens do capataz "Venga, para la izquierda! Todo para la derecha!" a orientar o passo marinero - assim denominado por se referir aos movimentos dos pescadores a tirar peixe na praia, balançando.
Num dos varandins do Hotel Larios, à esquina da Praça da Constituição (onde está a tribuna de honra para convidados e individualidades), um saetero canta uma saeta em homenagem ao Cristo da Expiração. É a última procissão de Quarta-Feira Santa. Quando o trono assoma à praça, as pessoas levantam-se e o burburinho dá lugar ao silêncio na praça. Passos lentos, rostos já derreados os dos homens de trono - e ainda faltam pelo menos cinco horas para o regresso à casa da irmandade. O andor pára logo a seguir à praça, no início da Calle Granada. Regressam as conversas. Assim que um trono passa num lugar, a mole humana desfaz-se para ir procurar outro posto de observação. A paragem dura um, dois minutos. Tempo suficiente para que o aguaor dê água aos homens de trono, com os garrafões a passar de boca em boca. Os homens do submarino aproveitam para respirar uns instantes. A pausa é alívio e júbilo.
Pelo percurso oficial todos os tronos passam: Ponte de Tetuán, Alameda Principal, Plaza de la Marina, Rua Marqués de Larios, Plaza de la Constitución, Rua Granada e a terminar na Plaza del Carbón. São três quilómetros que demoram pelo menos sete horas a ser percorridos. Mas para confrarias como a Nova Esperanza ou Monte Calvário, que têm as suas casas longe do centro, isso significa pelo menos dez horas de caminho previsto desde que se sai até ao regresso - mas o normal é chegar às doze.
Além das cadeiras que se podem alugar nas ruas, os cafés e restaurantes que se situam no circuito também fazem mais negócio: quatro cadeiras e uma mesa custam 100 euros, consumo à parte. E há possibilidades de comprar lugares para toda a semana, com preços diferentes dependendo do dia e do lugar.
Um barroco carnal e teatral
Esta vertigem contrasta com a dimensão penitencial que os actos da Semana Santa pretendem transmitir. O barroco surge, aqui, em todo o seu superlativo: carnal, teatral, espectacular. As imagens, mesmo se foram esculpidas, na maior parte, já no século XX (sobretudo depois da Guerra Civil de Espanha), recuperam e reflectem a piedade católica que vem do barroco.