Um grito controlado rasga o inumano silêncio que acoberta a mancha granítica. É, urbanamente, de madrugada, mas a urbanidade ficou a 25 curvosos quilómetros de distância, no hiper de Melgaço em que se garantiu a sobrevivência para meia-dúzia de dias. Ah, ok!, temos o frigorífico, e a placa de vitrocerâmica; o microondas e o aquecimento; e temos um televisor que, apesar das moscas, ainda nos põe dentro da casa o país, lá longe, e Espanha aqui ao pé. Mas fora isto, ou fora disto, para lá da grossa porta de madeira, o tal grito irrompe da noite dos dias, organizando o gado a caminho do alto desta montanha como sempre se fez, desde que homens e vacas se tornaram inseparáveis e encontraram refúgio neste lugar a que chamam Branda da Aveleira.
Continuam inseparáveis, por aqui, as duas espécies. Ainda que sejam muito poucos os homens e mulheres para os animais que pastoreiam, como souberam os urbanos mais distraídos pelo filme de Jorge Pelicano, é mesmo verdade que, em Portugal, ainda há pastores. A diferença, no caso deste lugar pertencente à freguesia de Gave, é que eles não precisam de passar as noites com os seus animais, graças aos carros e motas que, há umas décadas, pela mesma altura em que uma canção dizia que o vídeo matara a estrela da rádio, já andavam também a "matar" esta e outras brandas da Peneda-Gerês. Casario que, sem gente para o aconchegar, aceitou, na solidão dos dias, o afago das silvas. E quase desapareceu debaixo delas.
Antes dessa revolução na mobilidade - a mesma que nos trouxe aqui, que de outra maneira não haveria fôlego para tanta lonjura - estes aglomerados de rudes construções de granito eram autênticas aldeias de Verão, também chamadas por isso, e por alguns, Verandas. Erguidas mais perto do alto das montanhas, nelas os pastores passavam os dias entre Maio e Setembro, acompanhando o gado que, nas cumeadas da serra, encontrava, e encontra, pasto fresco, no clima, esse sim, brando. Os primeiros raios do dia transportam essa memória no indisfarçável diálogo entre uma mulher e a sua manada, que galgam os caminhos indiferentes à inclinação da montanha. E esta, se não tem uma sineta ao pescoço, intromete-se na conversa, haja vento para isso, com o som seco das torres eólicas que, há alguns anos, fizeram ninho nos cumes à volta.
Há apenas um outro pastor na serra, mas há gente na aldeia. Lá em baixo, mais perto do riacho que nos há-de refrescar, um casal reconstrói, fim-de-semana após fim-de-semana, pedra após pedra, o seu refúgio familiar. Mas no resto, em pelo menos nove habitações, são os turistas que ajudam a reconstruir esse sentido de abrigo que durante séculos, escapava, quente, das chaminés escondidas pelos castanheiros.
Várias das antigas casas e cortelhas foram recuperadas e, como se viu à chegada à branda e ao texto, equipadas com os confortos que a cidade tem para dar, procurando assim os seus donos que a cidade dê também o que tem de sobra: almas em transumância entre a rotina do trabalho e a rotina da casa, que roubam minutos aos seus dias a planear aquilo a que, sinal dos tempos, se designa hoje em dia por escapadas... ou fugas.