Fugas - Viagens

Museu da América

Museu da América Luís Maio

As Américas de Madrid

Por Luís Maio

A maior parte dos madrilenos nunca ouviu falar, os turistas ainda menos. Mas o Museu da América é um dos mais ricos e fascinantes da capital espanhola. A Fugas partiu à descoberta deste extraordinário museu-continente e aproveitou para dar um salto ao vizinho Museu do Traje

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Os museus do Paseo del Prado contam-se entre as principais atracções de Madrid. A sua concentração tem, no entanto, a desvantagem de roubar freguesia aos homólogos disseminados pela cidade. Um exemplo flagrante dessa discriminação é o Museu da América. Alcandorado no alto de Moncloa, na ponta nordeste da cidade, fica demasiado fora de circuito para figurar nos usuais programas de excursão. Na verdade, nem sequer é do conhecimento de muitos madrilenos.

A escassa popularidade contrasta, porém, com a excelência do recheio. É das mais vastas e valiosas colecções originárias dos territórios americanos na época de domínio espanhol. São perto de 20 mil objectos, dos quais cerca de 2500 se encontram em exposição permanente. As primeiras peças chegaram nos inícios do século XVI, quando os conquistadores começaram a enviar souvenirs exóticos ao monarca espanhol. Foram depois crescendo até à aurora do século XIX, quando parte das conquistas ultramarinas vieram a ser contestadas pela ambição de outras potências europeias. Durante esses três séculos, no entanto, a Espanha foi o maior império à face da terra e o Museu da América reúne o melhor da arte e do artesanato ultramarinos (sobretudo das Américas mas também das Filipinas) desse período.

A distância do Paseo del Prado ajuda, mas não chega a explicar os baixos índices de visitantes. O Museu da América mais parece ser um daqueles casos a que se aplica o ditado "quem nasce torto, tarde ou nuca se endireita". O que começou por ser o gabinete de curiosidades de Filipe II foi, algo estranhamente, anexado ao Museu Arqueológico em meados do século XIX. A construção de um edifício próprio só avançou no final dos anos 30 do século seguinte, ficando pronto em 1941, mas a transferência do acervo demorou até meados dos anos 60. Por essa altura a dinâmica expositiva apurou-se obsoleta, ditando o fecho do edifício no princípio da década de 80.

Quando reabriu, em 1994, foi ainda numa lógica pedagógica, depressa ultrapassada pela geração de museus-espectáculo, a que hoje ainda se subtrai. É agora um museu obsoleto, pouco user friendly, para além de politicamente suspeito. A beleza da coisa, ou o reverso da medalha, é que os museus desalinhados, ou mesmo fora de moda, são agora uma nova moda. À fruição do seu acervo junta-se essa mais-valia do antiquado, que convida a uma leitura completamente diferente daquela que os painéis interpretativos sugerem.

Pequenas-grandes diferenças

Os espanhóis peninsulares não ligavam à arte produzida do outro lado do Atlântico - que chegou a ser abundante no século XVIII, nos vice-reinos da Nova Espanha (América Central) e do Peru (Peru e Bolívia) -, porque a consideravam uma mera duplicação de modelos europeus. As nações latino-americanas, por sua vez, tinham tendência a recusar tudo o que era símbolo colonial e em alternativa procuraram definir novas identidades, reabilitando a herança pré-colombiana. Agora, porém, ou melhor, ao longo das últimas duas décadas, tem-se verificado um acrescido interesse pela arte americana de matriz espanhola, ao ponto de se tornar tema recorrente de teses universitárias nos Estados Unidos e um assunto de destaque em revistas da especialidade como a ArtForum.

Este novo enfoque na arte colonial espanhola é outra das grandes razões para visitar o museu de Moncloa. Porque se as colecções pré-colombianas e etnográficas são notáveis, onde o museu de Madrid arrasa a concorrência é justamente no capítulo das chamadas c colecções "vice-reais". Quer dizer: arte dos séculos XVI a XIX decorrente de valores espanhóis, mas produzida nas Américas, de uma forma ou de outra adaptada às peculiaridades do novo contexto. E o prazer que dá hoje explorar este filão passa muito por descobrir as pequenas diferenças, muitas vezes surpreendentes, frequentemente reveladoras. Tudo num legado pictórico sul-americano que até há bem pouco tempo era desqualificado como uma réplica inferior dos mestres europeus.

É todo um leque de mestiçagens que se testemunha ao longo de três séculos de colonização. Vai da aplicação de novos materiais e técnicas pictóricas ao imaginário clássico espanhol de fenómenos de hibridez simbólica, onde se destaca a tendência conhecida pró "ídolos atrás dos altares", através da qual os povos ameríndios continuaram a adorar as suas divindades através das figuras dos santos católicos. É esta arte mestiça, quase sempre original, muitas vezes de grande apuro formal, que se encontra profusamente documentada no Museu da América.

Há uma série de imagens bíblicas clássicas, incluindo a Imaculada e a Adoração dos Reis Magos, representadas segundo estilos comuns na pintura europeia dos século XVI e XVII. Mas, quando se vai a examinar mais de perto, descobre-se que esses quadros mexicanos são feitos em penas, seguindo uma velha receita pré-colombiana. Há depois um conjunto de fantásticos biombos, como aquele que ilustra o Palácio dos Vice-Reis e documenta a sociedade mexicana no século XVII (incluindo índios e mestiços), ao mesmo tempo denota influências nipónicas, nomeadamente do estilo Namban. Outras jóias da colecção colonial são as famosas representações da Virgem de Guadalupe que escondem/revelam uma antiga divindade telúrica, os retratos de noviças coroadas, subgénero estritamente mexicano, e os espantosos quadros de castas, ilustrando toda a gama de combinações raciais (desde espanhol + ameríndio = mestiço a ameríndio + negro: zambo).

A pergunta que é inevitável fazer quando se contempla este fantástico legado colonial é por que razão o Museu de América é tão pouco visitado e publicitado. A propósito da recente exposição Pintura de Los Reinos em Madrid, Fietta Jarque fazia notar no diário El País que na Espanha actual "não se estuda, nem se lê nada sobre a cultura pré-colombina, nem sobre a cultura vice-real" (23.10.10) Mais gritante, diga-se de passagem, é o caso português, onde nem sequer há um museu das ex-colónias. De resto, as histórias de Portugal para jovens que hoje se editam são muitas vezes derivadas de compêndios salazaristas.

Neutralidade aparente

A fachada invoca uma igreja colonial, dominada por uma grande torre barroca. Já as salas de exposição distribuem-se em dois pisos, em torno de um pátio ajardinado em tudo igual aos dos conventos daquela época. Meio igreja, meio convento, o Museu da América em Madrid é tudo menos um acto de contrição. Antes pelo contrário, a nostalgia do império serviu de fio condutor ao programa de construção de um museu que, em 1941, se inaugurou com o propósito explícito de documentar o papel missionário e civilizacional da Espanha colonial.

O edifício persiste como testemunho do franquismo, mas a colecção foi naturalmente rearranjada para a reabertura de 1994. Optou-se por um ordenamento temático de fundo antropológico, tão neutro quanto possível do ponto de vista ideológico. Claro que essa neutralidade não existe e o que acontece na prática é que as colecções - que é como quem diz, as culturas dos nativos, dos escravos, dos colonizadores e do que se tornaram quando se passaram a cruzar - convivem a cada esquina do museu. Esta promiscuidade tem uma certa piada, até porque acaba por obrigar o visitante a um exercício constante de confronto cultural.

A colecção permanente está estruturada em cinco grandes áreas, que são estanques e podem ser vistas em separado, ao passo que vê-las de seguida exige pelo menos um dia. A primeira e mais interessante refere-se ao primeiro contacto com a América e tem por ponto alto a recriação de um gabinete de curiosidades do século XVIII, incluindo um violino de pele de crocodilo e majestosos trajes de fibra vegetal do Canadá e do Haiti.

A segunda área é a mais pedagógica e hoje a mais requentada, centrada num filme entediante sobre as maravilhas naturais das Américas e uma maqueta do seu povoamento. A terceira área visa a sociedade e é a maior de todas, correndo pelos dois pisos do edifício a ilustração dos diferentes tipos de sociedade que coexistiram até aos nossos dias do outro lado do Atlântico. Seguem-se secções sobre religião e comunicação e é nelas que se encontram os maiores tesouros do museu madrileno, incluindo as esculturas em ouro do tesouro dos colombianos Quimbayas, uma múmia pré-incaica de Paracas ricamente adornada, ou ainda o Codex Trocortesianus, que condensa em 112 páginas a cosmovisão dos Maias.

O vizinho Museu do Traje
Moda no jardim

O Museu da América fica à entrada da Cidade Universitária de Madrid, vasto talhão urbano de 5,5 km2, onde faculdades e residências académicas se encontram esparsamente disseminadas por uma área na maior parte arborizada. É um dos melhores sítios para fazer desporto e piqueniques na capital espanhola. Lá no meio fica o Museu do Traje, que desde logo se recomenda pelo edifício onde se encontra sediado, majestosa peça de arquitectura modernista em bronze e alumínio, que combina um corpo horizontal de áreas generosas com uma torre de vários pisos. Desenhado por Jaime López de Aliaín e Algel Díaz Domínguez entre 1971 e 1973, o edifício foi pensado de raiz para funcionar como museu, começando por ser dedicado à exposição de arte contemporânea.

Acolhe agora um Museu do Traje que remonta às exposições de trajes folclóricos dos anos 20, mas foi profundamente reestruturado para a reabertura neste edifício, em 2004. A exposição permanente propõe uma visita guiada pela história do vestuário em Espanha desde os inícios do século XVIII, recapitulando as grandes tendências internacionais que desde então marcaram os hábitos de vestir, mas com especial enfoque naquilo que é especificamente espanhol. Os momentos mais altos da visita acabam assim por corresponder às duas salas monográficas, uma exibindo trajes regionais centenários de pastores a toureiros, a outra recordando Mariano Fortuny (1871-1949), "revolucionario creador español de nombre universal", que deu um contributo essencial para a libertação do corpo feminino de velhos espartilhos.

Mais do que uma história da moda, este museu propõe-se como um centro de investigação do património etnológico e os seus fundos integram toda a espécie de objectos, incluindo 38 mil peças relacionadas com actividades económicas, mais de 16 mil jogos e engenhocas lúdicas, 26.500 artefactos ligados à religião e uma extensa selecção de posters. É uma verdadeira história de Espanha documentada através da sua cultura de consumo, onde se destacam artigos tão extraordinários como a boneca Mariquita Perez, pueril criação portuguesa que conquistou de rompante a Espanha dos anos 40.

Informações

Museu da América
Avenida Reyes Católicos, 6
Tel.: 91 549 26 41; 91 543 94 37
http://museodeamerica.mcu.es/informacion
De terça a sábado das 9h30 às 20h30; domingo das 10h00 às 15h00
Preço: 3€; gratuito sábado à tarde e domingo

Museu do Traje
Avenida Juan de Herrera, 2
Tel.: +34 915504700 e site: http://mseodeltraje.mcu.es/
De terça a sábado das 9h30 às 19h; domingo das 10h00 às 15h00
Preço: 3€; gratuito sábado à tarde e domingo

Como ir

Viagens de Lisboa a Madrid, na Easyjet, a partir de 41€.

Onde comer

Bokado Madrid
Avda. Juan de Herrera, 2
Tel.: +34 91 5490041
http://www.bokadogrupo.com/
O Bokado é o restaurante do Museu do Traje, um prisma envidraçado na sua base, magnificamente enquadrado pelos jardins da universidade. A entrada do restaurante é independente do museu e o seu terraço é por certo um dos sítios mais elegantes para jantar ao ar livre em Madrid. A ementa tem a assinatura da jovem dupla Mikel e Jesús Santaria, da qual se diz ter revolucionado o mundo das tapas no País Basco. Aqui servem uma cozinha de vanguarda enraizada nas tradições espanholas com um menu de degustação a 45€. As suas famosas tapas podem ser provadas na cafetaria anexa, decididamente mais económica.

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