Quem consultar a lista telefónica de Trieste encontra apelidos italianos, mas também alemães, arménios, austríacos, croatas, eslovenos, gregos, húngaros, sérvios, judeus e muitos mais. Quem anda nas ruas da cidade ouve falar tantas línguas e cruza gente de fisionomias tão diversas que até se pode perguntar em que canto do mundo se encontra. Esta salada humana não impede, contudo, que a cidade no extremo nordeste de Itália seja um dos redutos nacionalistas do país. Aqui, o partido de Berlusconi vence eleições de olhos fechados e os movimentos de extrema-direita estão nas suas sete quintas.
A retórica sobre a essência italiana de Trieste soa desconcertante num sítio de estrangeiros, mas acaba por fazer sentido por isso mesmo. Porque muitos são expatriados e refugiados, gente que por uma razão ou por outra acabou por querer cortar com o passado e viver uma nova identidade. Nem sequer é uma tendência recente. A cidade na ponta norte do Adriático conheceu o seu período de maior esplendor a partir de 1719, quando o imperador Carlos V lhe conferiu o estatuto de porto franco e abriu as portas à emigração internacional, declarando que ofensas à lei cometidas noutros lados seriam esquecidas, desde que os infractores não voltassem a prevaricar.
Mas o dilema identitário de Trieste conhece outra dimensão, tão ou mais determinante da mentalidade de quem a habita. Estranhamente, numa latitude onde o nacionalismo é moeda corrente, a atmosfera que se respira na cidade apura-se pouco italiana. É outro absurdo que acaba por fazer sentido em função da história: Trieste esteve dois séculos em guerra intermitente com a vizinha República de Veneza, antes de requerer a protecção de Leopoldo III, em 1382. Desde aí, e até 1918, viveu sob a monarquia dos Habsburgo, convertendo-se na principal cidade litoral do Império Austro-Húngaro. A austeridade e o puritanismo, o sentido de ordem e de rectidão moral persistem quase um século depois entranhados nos hábitos e costumes triestinos, à mistura e por vezes em choque directo com o temperamento latino.
Ocupada pelo Reino de Itália em 1918, Trieste veio depois a ser anexada pela Alemanha nazi (1943), pela Jugoslávia de Tito (1945), e governada por forças aliadas anglo-americanas até 1954, quando (finalmente?) foi devolvida ao estado italiano. Ao longo deste conturbado devir histórico, mas sobretudo desde a integração em Itália, foi perdendo fôlego, caindo numa letargia de que apenas começou a recuperar nos anos 70, com a criação de uma nova infra-estrutura portuária colada à Eslovénia. Hoje é o pólo central na estratégia do chamado Corredor 5, de ligação dos países da Europa de Leste e de Oeste, que reformula em termos económicos o famoso programa político da Mitteleuropa, abortado no final da Primeira Grande Guerra. Em qualquer caso, Trieste persiste como a cidade menos italiana de Itália.
Uma cidade de estrangeiros (sobretudo eslavos e mediterrânicos) que querem ser mais italianos do que os italianos, uma cidade de italianos que vivem como se fossem germanófilos. A estes quebra-cabeças há que acrescentar um terceiro eventualmente mais persistente na mentalidade dos triestinos, que é o cruzamento de um clima mediterrânico com os ventos frios que sopram de nordeste (eles dizem que vêm da Rússia), em particular o implacável Bora, que nunca sopra durante menos de três dias seguidos. Junta-se tudo e começa-se a perceber a quantidade de casos de loucura e de suicídios na cidade, que são dos mais elevados que se registam em Itália. Mas também se começa a decifrar o enigma que é a extraordinária beleza, carisma e poesia desta encruzilhada europeia.