Fugas - Viagens

  • Pormenor da capa de Viagens Contadas
    Pormenor da capa de Viagens Contadas

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Viagens Contadas: O deserto não é para mulheres

- São os cães do diabo! Gente louca, doentes dos nervos. É lá que tem de ficar, lá longe no deserto. Cuspo sobre os seus nomes, seja louvado o Profeta!

O homem cuspiu para o chão de areia. Hussein governa um dos albergues de Merzouga e não costuma blasfemar contra os clientes. É, aliás, cumpridor da tradicional boa hospitalidade marroquina, mas não disfarçava a ira contra as francesas. Um grupo de mulheres que tinha acabado de abandonar o albergue em direcção ao deserto. Gente muito esquisita, garantia o marroquino:

- Só perguntam pelos homens...

Há muitas razões que trazem os estrangeiros ao deserto. - Sonhos de infância, a descoberta, a procura de soluções para os seus problemas pessoais. Também há quem venha à procura de Deus, ou de uma verdade suprema. Afinal, todas as religiões nasceram no deserto - ouviria os argumentos mais tarde nessa noite, de copo de chá na mão, à conversa com um guia francês -, há também muitas mulheres, solitárias, que chegam à procura delas próprias, ou de algo mais...

E isso, Hussein não compreendia. O marroquino recebeu‑nos à porta da barraca onde se pode tomar duche. Não tinha telhado, porque nunca chove, e o banho era dado a golfadas de um regador encarrapitado por cima da parede. Como não havia telhado, equilibrava‑se bem. O albergue fica a alguns metros de distância, mas dispensamos a visita aos quartos, já tínhamos decidido dormir no telhado. A única vantagem de viajar no Verão é esta mesmo, evitando as baixas temperaturas durante a noite, ter apenas o céu como cobertor. Aproveitei o convite para o duche e submeti o meu cabelo a uma experiência extraordinária - secou em segundos sem forma nem jeito, sob o sufocante calor do deserto. A cabeleira, em vez de cair sobre os ombros, explodiu em todas as direcções, e ficou assim, muito leve e armada, como se a tivesse tratado com algum produto especial. Consequência inesperada da total ausência de humidade.

Assim penteada, subi as dunas e juntei‑me ao resto do grupo que se preparava para assistir ao espectáculo do pôr-do-sol. O céu do fim do dia tornou‑se laranja e depois quase vermelho, para voltar a clarear. A linha do horizonte oferecia apenas duas cores: preto por baixo e amarelo por cima, como se o céu e a terra tivessem combinado trocar de lugar. Finalmente ficou tudo negro. Vi nascer a primeira estrela - «sempre a mais brilhante e também a mais infiel» - dizem os árabes, habituados a observá‑las sem filtros. Com o Sol a dar o seu lugar à Lua, as temperaturas baixam e o deserto deixa de ser sufocante, para se tornar apenas tépido. Os momentos são aproveitados para a reflexão ou para a conversa, animada com música. À porta do albergue, Hussein juntara‑se ao grupo que cantava e dançava, em roda, a arrastar os pés. Nós faríamos o papel de espectadores. Hassan, irmão de Hussein, era o mais letrado dos dois, com explicações óbvias para o folclore marroquino. Foi ele quem nos disse que as letras das músicas falam sempre do mesmo, fiéis à missão de dignificar o rei e espalhar a voz do profeta Maomé.

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