- A evocação de Deus e do Profeta é uma constante nas nossas vidas. Mesmo se nos esquecermos de comer e formos dormir sem jantar, não nos esquecemos de testemunhar que não existe outra divindade, a não ser Deus. Maomé é o seu Profeta!
Na noite absoluta, os sons e as danças aproximam os homens do Deus em que acreditam. Hassan era velho. Cheio de rugas e bossas, encobertas no corpo pela djelaba, descobertas no rosto, com que nos fitava. O velho era um sábio, de hábitos e conversa simples. Perante a atitude séria - afinal falava de religião -, soltou uma gargalhada desdentada. Cada um ri do que pode, e Hassan ria‑se de nós.
- Vocês estão é com fome! Vamos, aproveitem a fogueira e façam o jantar!
Hassan dispensou‑nos do espectáculo. A música de Alá também serve para atrair turistas e já outros se aproximavam. Para eles havia mais histórias.
- Vou contar‑vos a história de Hibban, um dos mais vaidosos monarcas que viveu na minha terra. Quando ouviu contar que os mais famosos soberanos do Mundo pronunciaram sempre, antes de morrer, palavras que se tornaram célebres, também quis perpetuar a sua morte com uma frase que lhe desse fama e glória. Mas que deveria ele dizer no derradeiro momento da vida? Foi então que o seu secretário lhe respondeu:
- Conheço um verso do mais célebre poeta curdo que é magistral!
E assim ensinou o monarca a repetir uma frase misteriosa. Mesmo sem conhecer a exacta tradução, foram essas as palavras que Hibban repetiu na hora da morte. A cena impressionou os presentes, que permaneceram, contudo, sem conhecer o teor da frase. Quando finalmente os escribas a registaram e os tradutores a traduziram, veio a saber‑se que o monarca tinha dito no leito da morte «Deixo tudo ao meu bom secretário!».
As gargalhadas ecoaram entre o grupo, agora mais tagarela, enquanto o nosso se preparava para jantar. Feijão, atum e esparguete, menu do deserto, como haveríamos de nos habituar. Passámos o resto da noite à volta da fogueira quase sem lume por causa do calor, em convívio com os outros turistas, os que sobravam das danças de Hussein. Entre eles, o guia francês que gostava de falar dos desertos. À boa maneira árabe, era um homem que fumava sem tréguas. Acendia uns nas beatas dos outros e não eram uns cigarros quaisquer - Gitanes, negros e fortes!
A conversa já se iniciara quando finalmente o meu chá ferveu. Era mais um monólogo, por conta do francês. As palavras levaram‑no ao deserto de Atacama, no Chile, o local mais árido do planeta, como pude testemunhar, uns anos depois. Tentava demonstrar as semelhanças entre os povos que habitam os desertos, nómadas no Chile, tal como em Marrocos. Lá descem os Andes, onde pastam as cabras, para as venderem na cidade de Calama.
- Aqui - comparava - têm o Atlas. Nos dois casos dedicam‑se à pastorícia e não temem o deserto, mesmo que lhes mate os animais. No Chile até o baptizaram, chamando‑lhe Vale da Morte, por essa mesma razão.
Sobre este assunto ouviria outra versão, mais tarde, quando visitei o Norte do Chile e São Pedro de Atacama. Nessa viagem conheci Fernando, um motorista com manias de guia. Deixou‑me à entrada do Vale da Morte preparada para uma caminhada, com a seguinte história: