Fugas - Viagens

  • Pormenor da capa de Viagens Contadas
    Pormenor da capa de Viagens Contadas

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Viagens Contadas: O deserto não é para mulheres

- O Vale da Morte chama‑se assim por causa de uma confusão. O padre arqueólogo que descobriu Atacama falava francês, era belga, e foi ele que baptizou o vale gémeo, que nasce na outra vertente da montanha. Do outro lado, há sal e lítio, deste apenas pedras. A um chamou o Vale da Lua, ao outro queria chamar o Vale de Marte (mars em francês). Mas os locais perceberam Muerte! E assim ficou, afinal o nome não lhe assenta mal.

Naquela noite não contei a história do equívoco de Atacama porque ainda não a conhecia, mas falei da gente de outro deserto, que me salvou quando ia perdendo a vida. Foi no Iraque, às mãos de um bando de salteadores que atacaram a tiro de AK‑47 a caravana de jornalistas onde seguia. Estávamos a atravessar o deserto, no Sul do país, entrando pela fronteira do Kuwait com destino a Nassíria. Uma das balas atingiu‑me numa perna depois de furar o chassis do carro, que roubaram. Deixaram‑me ferida, abandonada na berma, sem transporte, entregue unicamente aos cuidados de um colega. A memória não guardou o registo da duração desse momento de abandono mas acabei resgatada por três homens que, saídos do deserto, me levaram de carro até uma localidade, onde pude pedir ajuda. Não consigo esquecer a imagem da vastidão de areia a correr ao lado da janela enquanto fazia contas à vida. Um dos homens, com dois dedos amputados numa mão, agarrou na minha e começou a rezar.

O tema era circular, levara‑nos novamente à relação do Homem com Deus e o deserto. O francês ouviu‑me com gosto e sem dramatismo e no final citou o pintor Arcimboldo: «A natureza é exuberante, maternal e generosa e as suas formas variam até ao infinito». «Nunca veio ao deserto!», concluiu a filosofia com uma certeza: penso que é a total ausência de estímulos desta paisagem sempre tão igual que promove a reflexão e a procura interiores.

A conversa apagou‑se com a fogueira. Senti então o chão frio debaixo dos pés descalços, pela primeira vez naquele dia. Entrava na sala do albergue, iluminada por velas que ardiam em candelabros improvisados. O ambiente não era romântico, apenas despojado. Subi as escadas mal equilibradas até ao telhado onde estendi o saco‑cama.

Fixei o tecto, que não era branco como estou habituada, e adormeci a contar estrelas. Alguém ainda disse:

- Cuidado, aproxima‑se a hora dos chacais...

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in "Viagens Contadas", de Maria João Ruela
edição A Esfera dos Livros
240 pp (+8 extratextos)
Preço de capa: €18,50

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