O dia 25 de Março de 1882 marca um momento de viragem na história do Bom Jesus do Monte, em Braga. Não porque essa data tenha alguma relação com o calendário religioso deste que é um dos principais lugares de veneração para a comunidade católica no Norte do país, e uma referência dos chamados sacro-montes, que, na sequência do Concílio de Trento (século XVI), restauraram a experiência crística de Jerusalém. Mas porque, tendo-se aí realizado, nesse dia, a inauguração de um funicular pioneiro no país -, os cristãos que demandavam esse lugar sagrado passaram a poder (e ter de) optar entre fazer o percurso da Paixão a pé ou de... elevador.
Os registos históricos mostram que, no final desse ano de 1882, o número de visitantes do Bom Jesus subiu de 10 mil para os 76 mil. Mas não é possível calcular o número daqueles que continuaram a subir a pé os 583 degraus que separam o pórtico que assinala o início da Via-Sacra da porta do icónico templo projectado pelo arquitecto Carlos Amarante (1748-1815), e que foi inaugurado fez em Setembro dois séculos - data que é pretexto para um calendário de iniciativas, entre as quais está um Congresso Luso-Brasileiro do Barroco, a decorrer no próximo fim-de-semana (ver caixa).
A reconstituição da Via Dolorosa no Monte de Espinho fronteiro a Braga - e que acolhe dois outros lugares incontornáveis no roteiro turístico-religioso da Cidade dos Arcebispos, o Sameiro e a Falperra (ver caixa) - foi iniciada em 1723, por decisão do bispo D. Rodrigo de Moura Telles (1644-1728). Surgiu num lugar que já tinha história consagrada, e na sequência de outras vias-sacras que então existiam em Braga (no Convento do Pópulo) e noutras localidades do país, com destaque para a do Buçaco, que vinha do século anterior.
Diz a lenda associada à História que, na batalha do Salado (1340), em que Afonso IV se reuniu a Afonso XI de Castela para lutar contra o reino muçulmano de Granada, participou o arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira (1280-1348), e que a vitória dos cristãos foi ajudada pela intervenção de Santa Cruz do Monte. A assinalar o patrocínio divino, o arcebispo mandou erigir no monte bracarense uma primeira ermida, que depois seria substituída por uma "fermosa capela com imagem milagrosa, assistida de ermitães e festejada por grandes despesas pelos melhores da Cidade" (segundo uma citação do historiador Carlos Alberto Ferreira de Almeida), que, no início do século XVIII, daria lugar ao actual tempo projectado por Carlos Amarante.
Jerusalém restaurada
O Bom Jesus que hoje conhecemos é o resultado da justaposição de diferentes intervenções ao longo dos anos. E a melhor forma de entender isso é mesmo esquecer a comodidade do elevador, e deitar os pés às escadas - porque é esse o sentido certo da Via-Sacra.
Um primeiro lanço de degraus faz-nos passar por baixo do pórtico, marcado pelo brasão do bispo D. Rodrigo Teles e pela inscrição na parede "Jerusalem Sancta restaurada e reedificada no anno de 1723" - o que pode fazer crer que uma Via-Sacra anterior já aí existisse, algo que é ainda tema de debate historiográfico.
No primeiro pátio surgem-nos duas capelas quadradas - as formas vão depois evoluindo para hexagonais e octogonais, conforme a subida e a era da construção -, representando A Última Ceia e a Agonia de Jesus. São as primeiras representações dos sucessivos episódios da Paixão, em figurações policromadas em barro, sobre fundos também ilustrados. Uma estética de um realismo desconcertantemente naïf, que Ramalho Ortigão, por exemplo, classificou como "indubitavelmente abominável", mas que cativou admiração junto dos visitantes mais devotos, e não só. Actualmente, as capelas apresentam um deplorável estado de degradação, e, na visita recente que fez ao lugar, a Fugas testemunhou o lamento de visitantes perante a destruição desse património que moldou o seu imaginário religioso. "Olha, até parece que cortaram os dedos ao Judas, coitado. É uma pena ver isto assim, e ainda dizem que é património mundial", comentava uma mulher para a sua amiga, certamente confundindo Braga com a cidade vizinha de Guimarães.
Refira-se que a Confraria do Bem Jesus iniciou, entretanto, com apoio mecenático, o restauro das diferentes estações da Paixão, trabalho que é já visível nas capelas mais próximas do templo e relativas às estações do Levantamento e do Descimento.
Escadório em forma de cálice
Voltemos ao caminho: a primeira parte do percurso da Paixão do Bom Jesus segue em aprazível ziguezague sob um bosque frondoso até ao pátio onde se encontram as sétima e oitava capelas, dedicadas a Pilatos e à subida de Jesus para o Calvário. Deste lugar, desfruta-se da mais bela perspectiva sobre o conjunto patrimonial, e que corresponde ao "bilhete-postal" mais popularizado do sítio: o escadório de recorte barroco, em sucessivos lanços simétricos, pontuados por fontes e estátuas, e com as demais capelas, até perfazer as 14 estações mais comuns da Paixão. No cimo, a igreja inaugurada há dois séculos, com a sua fachada que mais parece uma tela de pintura, completa este quadro patrimonial, que unifica a arquitectura com a escultura, a pintura e a paisagem, ao melhor estilo barroco.
O historiador José Carlos Peixoto, membro da Confraria do Bom Jesus - que, com o presidente da instituição, João Varanda, guiou a visita da Fugas -, chama a atenção para a forma de um cálice desenhada pelas fontes instaladas ao centro do escadório. E vê neste desenho - é a tese que defende no trabalho de investigação que dedicou ao Bom Jesus, e que está prestes a publicar - um gesto deliberado do arquitecto Carlos Amarante a evocar outra versão da lenda que está na origem deste sacro-monte, que aponta para o aparecimento de um cálice sagrado neste lugar do Monte de Espinho.
Mais evidentes, mesmo para olhares menos informados, são as alusões das secções do escadório aos Cinco Sentidos e às Virtudes, com fontes e esculturas representando cada um destes temas, da Visão ao Tacto, da Docilidade à Caridade... É "uma longa série de esculturas de personagens bíblicos num desfile de história sagrada, barroca, e uma rica glosa de símbolos com os seus enquadramentos, que tornam o Bom Jesus de Braga num excelente cortejo granítico de figuras, de modelos, de gostos e de cultura da sua época e numa versão enriquecida e esculturada das grandes procissões da Quaresma com uma encenação religiosa à moda das grandes festas do tempo", descreve o historiador Carlos Alberto Ferreira de Almeida.
Outra particularidade que transforma o Bom Jesus num caso único no país - nota José Carlos Peixoto -, é também a sua Via-Sacra prolongar-se por mais cinco capelas-estações dedicadas ao tempo da Ressurreição, num percurso que termina no Pátio dos Evangelistas, com a cena do Encontro de Emaús (estas capelas, quadradas, estão actualmente fechadas e em vias de ser restauradas).
O templo, como já referimos, é o projecto mais famoso de Carlos Amarante, o arquitecto bracarense que deixou obra notável na sua cidade (é o autor da fachada da Igreja do Pópulo e da Igreja do Hospital de São Marcos), mas também no Porto (Ponte das Barcas, Reitoria e Igreja da Trindade). Construída entre 1784 e 1811, a igreja denota o período de transição do barroco para o neoclássico. Interessante, no seu interior, é de novo a replicação, no altar-mor, de uma cena da Paixão, e ainda os seus altares laterais decorados com telas (pintadas pelo mestre Pedro Alexandrino) em vez das habituais esculturas.
Mas uma visita ao Bom Jesus só fica verdadeiramente completa com a extensão do passeio monte acima, para desfrutar da vertente, digamos, secular deste sítio, que, desde meados do século XIX, se afirmou também como uma estância de vilegiatura. Tendo muita água, mas não sendo uma estância termal, o Bom Jesus foi sendo também procurado pelos seus ares considerados saudáveis e curativos. Membros da família real (desde D. João VI, cujas armas estão representadas na fachada da igreja, até D. Manuel II) e da aristocracia nortenha, ao lado de figuras como Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão (que escreveram sobre o lugar), foram frequentadores do sítio, que, em simultâneo com o património arquitectónico e religioso, se afirmou pelo seu lago, bosque e complexo de grutas, a primeira das quais foi desenhada pelo arquitecto Ernesto Korrodi, no início do século XX.
A vertente mais turística está actualmente a ser também valorizada pela Confraria do Bom Jesus, que, desde há dois anos, aí vem executando obras de reabilitação também do espaço envolvente e dos edifícios civis (como os hotéis - ver caixa), com o melhoramento do piso, a criação de estacionamento e a reflorestação do parque de 50 hectares "com a plantação maciça de carvalhos e uma grande preocupação com o equilíbrio ambiental", nota João Varanda.
O primeiro funicular da Península, um elevador histórico e ecológico
O elevador do Bom Jesus do Monte é não apenas um ex-líbris de Braga, mas também da engenharia em Portugal relativa a este género de transportes públicos. Inaugurado em 1882, foi o primeiro funicular a ser construído na Península Ibérica e é actualmente o mais antigo no mundo que continua a funcionar pelo ecológico sistema de contrapeso de água. É certo que o seu inventor foi um engenheiro suíço, Nikolaus Riggenbach (1817-1899), que exportou para Braga o mecanismo que antes tinha testado no seu país, em Giessbach (1879). Mas a instalação do elevador foi dirigida no local pelo engenheiro português de origem francesa Raoul Mesnier du Ponsard (1849-1914), que depois haveria de surgir associado a equipamentos idênticos um pouco por todo país, do Porto (Guindais) à Nazaré, do Funchal a Lisboa (Santa Justa, Glória, Bica e Lavra...).
O principal empreendedor da construção do ascensor em Braga foi o empresário Manuel Joaquim Gomes, que, mesmo desafiando a oposição de vários responsáveis locais, viu nele um complemento natural à linha do "americano", inicialmente puxado a mulas, que ligava o centro da cidade ao pórtico do Bom Jesus. O elevador viria também valorizar o sítio como estância turística, em que o empresário estava já também a apostar com a transformação dos antigos "quartéis" de peregrinos em hotéis virados para uma nova classe de visitantes e turistas.
A inauguração oficial do funicular teve lugar no dia 25 de Março de 1882, após temerários testes realizados duas semanas antes. "É realmente admirável a simplicidade do maquinismo e a segurança dele. As paragens fazem-se com a máxima prontidão, apesar da celeridade da ascensão, sem que se pressinta o menor abalo, ou se experimente o mais leve incómodo. Pessoas vimos ali, que depois de haverem expressado os seus receios, fizeram a sua primeira subida, e perderam por tal modo o susto que não duvidaram arriscar a vida 7 e 8 vezes na mesma tarde. Houve um timorato que fez durante a tarde 12 ascensões! É assim que se formam os heróis" - assim descreveu a imprensa bracarense essas viagens experimentais, quando cada bilhete de ida-e-volta custava 100 réis (hoje custa dois euros).
O ascensor do Bom Jesus mantém praticamente a sua traça original - a estação de entrada ainda mantém o mesmo letreiro da "Sahida" -, com as suas cabinas amarelas, brancas e vermelhas. E não tem registo de qualquer acidente. Continua a ser uma tentação a que é difícil resistir em alternativa à via-sacra da subida do monte.
Outro ex-líbris do Bom Jesus é o monóculo que - segundo se crê - aí terá sido instalado pouco tempo antes do elevador. O óculo foi também dos primeiros a ser instalado no país, possuía dois conjuntos ópticos com três lentes cada e permitia uma vista aproximada da Cidade dos Arcebispos. Retirado, há oito anos, do varandim que para ele tinha sido construído de propósito junto à estação do ascensor, "o binóculo vai ser reposto no seu lugar, em Novembro", diz o presidente da Confraria do Bom Jesus, João Varanda. Vai voltar a poder-se "ver Braga por um canudo".
Quando ir
O Bom Jesus registou, em 2010, um milhão de visitantes, segundo os números da Confraria - em 1882, à data da inauguração do elevador, o número anual estimado de peregrinos era de 10 mil! Sem surpresa, o Verão e a Semana Santa são as épocas de maior fluxo de visitantes. Mas, verdadeiramente, qualquer altura do ano - desde que faça sol - é boa para uma visita a este santuário religioso, arquitectónico e paisagístico.
Como ir
O destino Bom Jesus está bem assinalado em qualquer das estradas que circundam a cidade de Braga, onde se chega com facilidade a partir da A3 (Porto - Valença) ou da A11 (Apúlia - Guimarães). O monte sagrado fica na saída de Braga para Norte (Avenida João Paulo II/ EN 103), em direcção a Chaves, na encosta oposta à Universidade do Minho.
Onde ficar
Há quatro hotéis no perímetro do Bom Jesus, todos eles hoje geridos pela Confraria. O mais antigo é o Elevador, cuja fundação remonta à década de 80 do século XIX, quando deixou de ser um simples "quartel" de peregrinos e estrebaria. Chegou a ser chamado Hotel Higiénico e Grande Hotel, e era o local de hospedagem da aristocracia que demandava a estância do Bom Jesus na viragem dos séculos XIX-XX. A sua localização é a mais privilegiada, já que oferece uma vista única sobre a encosta e sobre Braga. De cada um dos dois lados da igreja, há os hotéis do Parque e do Templo. Este resultou da recuperação recente de um edifício de recorte neoclássico, onde se manteve a belíssima fachada azul e branca com os azulejos da época. A seu lado, fica o antigo edifício do Casino (apesar do nome, nunca chegou a funcionar como tal), que foi projectado pelo arquitecto Raul Lino (o mesmo autor da Casa das Estampas, actual loja, e das colunas do coreto), agora transformado em edifício multiusos (congressos, reuniões, almoços, casamentos, baptizados...). O Hotel do Parque resultou também da reconstrução de um edifício oitocentista. Mais acima, ladeando o Lago, fica o hotel com este nome, que foi a mais recente aquisição da empresa Hotéis do Bom Jesus. É o único com 3 estrelas (os outros têm 4) e também o que está equipado com um clube de saúde.
Hotéis do Bom Jesus
Tel: 253603400/470/610
www.hoteisbomjesus.pt
Elevador (22 quartos duplos)
De 65 a 115€
Parque (45 quartos duplos + 4 suites)
De 51 a 115€
Templo (42 quartos duplos)
De 60 a 115€
Lago (53 quartos duplos + health center: jacuzzi, cardio-fitness, banhos turcos, massagens)
De 39 a 98€
Onde comer
O Hotel do Elevador tem um restaurante que serve os clientes dos quatro hotéis do Bom Jesus. É uma sala que tem uma vista privilegiada sobre a encosta, e uma ementa que justifica bem uma visita (ver texto na página seguinte). Mas em volta do Bom Jesus há outras alternativas para uma boa refeição. Logo no início da subida, junto à estação do Elevador e ao Pórtico, há o restaurante O Pórtico, com uma sala de jantar pequena e acolhedora, uma ementa com alguma sofisticação e preços a condizer. Sonhos de bacalhau e alheira de caça, nas entradas, bacalhau, massinha de cherne, arroz de marisco e cabrito são algumas das boas ofertas na carta.
MAIS No Bom Jesus também há alimento para o corpo
No Sameiro, ao lado da basílica, há o Restaurante Sameiro, mas que todos conhecem por Maia, o apelido da família que há décadas gere o espaço. O cabrito ou a vitela assados no forno e o bacalhau com natas são dos pratos mais afamados da casa.
Quem subir (ou descer) pelo outro lado da encosta, encontra na Falperra, integrado no edifício do hotel, o Dona Júlia. Cozinha tipicamente regional, onde se destacam os assados e as cabidelas de frango. Ultimamente parece ser das casas mais requisitadas de Braga, e nem sempre é fácil arranjar mesa.
O que fazer
Visto o Bom Jesus, o visitante não deve desperdiçar a oportunidade de completar o percurso dos três santuários nesta encosta de Braga, o que pode fazer pela estrada florestal que os liga numa distância de meia dúzia de quilómetros. A seguir fica a basílica do Sameiro, o segundo centro mariano de maior devoção em Portugal, depois de Fátima.Começou a ser construído em 1863, mas o complexo, que teve a mão de vários arquitectos e escultores, só ficaria terminado em 1979, com a abertura da cripta sob a nave principal. O altar-mor em granito polido e um sacrário em prata são marcas notáveis da basílica, que "olha" também para Braga através de um imponente escadório marginado por dois altos pilares com esculturas.
Um pouco à frente fica, quase escondida entre a vegetação, a Capela de Santa Maria Madalena da Falperra. É um projecto do arquitecto André Soares, edificado entre 1753-55, que a historiadora Maria de Lurdes Craveiro incluiu na lista das 50 Obras-primas da Arquitectura Portuguesa (edição Athena). "A Capela da Falperra constitui um dos momentos mais surpreendentes da arquitectura portuguesa que se entrega à definição rocaille. Em ousado rasgo imaginativo, André Soares conjuga aqui as figuras geométricas do quadrado, do rectângulo e do losango, em sintonia com os vários lanços da escadaria que imprimem um eixo vigoroso em direcção do corpo central da fachada", escreve a historiadora.