Fugas - Viagens

  • Rita Baleia/Arquivo
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Escadaria para o céu da Mouraria


Luzes de São Cristóvão

O que não falta são tesouros dispersos pela Mouraria, conhecidos só ou quase por quem lá habita. Um desses moradores que está por dentro é Nuno Franco, membro fundador da muito activa Associação Renovar A Mouraria. Não é guia profissional, faz questão de sublinhar, mas gosta tanto do lugar onde vive, há 33 anos, que guia periodicamente visitas organizadas pela associação. Como aquela que tivemos ocasião de seguir, a 24 de Setembro passado, no contexto das Jornadas Europeias do Património.

Ao longo de três horas foi lançada luz sobre jóias patrimoniais do género que toda a gente pode ver, pelo menos por fora, mas em que raramente repara, ou não sabe o que são. Desta lista de edifícios ilustres (mais ou menos) desconhecidos cabe destacar a morada de João das Regras e o poço do Borratém, mesmo ao lado do Martim Moniz e, um pouco mais acima, já a caminho do castelo, os palácios dos Marqueses de Vagos e do Conde de Tancos. Os dois fazem vizinhança à igreja de São Cristóvão, santuário de uma riqueza extraordinária, que também não consta das voltas turísticas do costume. Acabou por ser uma das principais revelações do passeio.

O actual pároco chama-se Edgar, está aqui há um ano e se tivesse outra profissão seria guia - dizemos nós, que o ouvimos falar da sua igreja como um empolgante capítulo desses policiais medievais que agora são best sellers. Primeiro mistério: o nome e a origem da igreja. Esta é uma das paróquias mais antigas de Portugal, havendo notícia de nela se praticar o rito moçárabe no tempo de D. Afonso Henriques (um rito que hoje ainda se pode acompanhar na catedral de Toledo). Sabemos que a igreja se chamava Santa Maria de Alcamim, mas as explicações para essa designação são pouco fiáveis e ninguém é capaz de dizer onde ficava ao certo.

A presente igreja data de 1671 e a sua única nave é aquilo a que se costuma chamar "um rectângulo de ouro". Quer dizer que toda a igreja é proporcional e por isso tem dois púlpitos, frente a frente, embora seja evidente que nunca precisou de mais do que um. "Esta igreja", acredita o padre Edgar, "foi construída para a missa e para a confissão. De tal maneira que aquele quadro que está ali [por trás do confessionário, do lado direito de quem entra] é a Confissão de Judas. Significa que essa traição seria a primeira coisa que o penitente iria ver quando se ajoelhasse para se confessar. Já do outro lado da nave estaria a Negação de Pedro, porque aquele quadro que lá está agora é mais claro e certamente não é de origem. A leitura que eu faço dos três anéis que se desenham nas paredes é que nós vamos do pecado para a Glória, mediados pelos santos (Virtudes) e pelos Doutores da Igreja (Sabedoria)."

A excursão da Renovar A Mouraria não foi, porém, um passeio estritamente histórico. Antes pelo contrário, Nuno Franco fez questão de frisar o actual pulsar multi-étnico e o programa de reabilitação Qren, que vai recuperar edifícios e instalar novos equipamentos nos pontos mais sensíveis do bairro. Este programa vem sedimentar uma série de intervenções particulares, efémeras ou permanentes, num espectro que vai da abertura da Casa da Achada, dedicada à memória do escritor e artista Mário Dionísio, aos murais assinados por Calma, artista de rua de São Paulo que também assina a capa do novo álbum dos Buraka Som Sistema.

No capítulo da arte de rua, tem de se atribuir uma menção especial a Camilla Watson e à sua exposição Tributo, outro momento alto da visita. Trata-se de um conjunto de retratos dos residentes mais idosos do Beco das Farinhas, um projecto que foi iniciado há cerca de três anos. As fotografias começaram por ser impressas directamente nas paredes, através da montagem de uma câmara escura em tenda no meio da rua.

É um projecto original, que está a mudar a face da Mouraria e a projectar a sua reputação além fronteiras. Entretanto, as fotografias nos muros vão-se deteriorando e por isso Camilla começou a transcrevê-las para contraplacado marítimo. Se encontrar patrocinador, Tributos poderá passar do temporário para o definitivo, ou seja, fará também parte da paisagem do bairro.

Uma última visão: contemplam-se os azulejos na escadaria do antigo Colégio dos Meninos Órfãos e as fotografias que Camilla imprimiu nas paredes do Beco das Farinhas e, de repente, parece que há uma ou alguma espécie de sintonia, ou pelo menos alguma espécie de diálogo, entre essas duas faces da Mouraria.

Mais informações sobre visitas guiadas e toda a actividade da Associação Renovar A Mouraria no site oficial.

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