Seria um segredo bem guardado se a porta não estivesse escancarada a toda a hora, para mais em pleno centro de Lisboa. O prédio identificado pela placa Edifício Amparo na fachada principal e uma esquadra de polícia no piso térreo é o antigo Colégio dos Meninos Órfãos, também conhecido como Recolhimento do Amparo e Colégio de Jesus. Fica no Martim Moniz, nas traseiras do Centro Comercial Mouraria. Lisboa é assim: uma das peças de arquitectura mais abomináveis da cidade encontra-se paredes-meias com uma preciosidade descurada pela edilidade, desconhecida da maioria dos lisboetas e certamente ignorada por todos os guias turísticos.
O centro comercial não é boa companhia também porque obstrui as vistas e faz estreitar a Rua da Mouraria. Não admira, portanto, se quem passa nem repara na torre de cantaria branca que ocupa o número 64. A fachada dominada por pilastras gigantes de ordem toscana é elegante e sóbria, mas no piso térreo há qualquer coisa que não bate certo.
A porta principal (actual esquadra) é coroada por um aparatoso arco contra curvado, com alcachofras nos vértices, no mais puro estilo manuelino. Com uma "pequena" diferença: os pilares em que o arco assenta estão de pernas para o ar, ou seja, com os respectivos capitéis a beijarem o chão. Terá sido um lapso de pedreiro, assegura a pequena nota que dedica ao edifício o primeiro tomo do quinto volume dessa "bíblia" da capital que é Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa (uma bíblia praticamente esgotada, que é mais provável encontrar em alfarrabistas do que em livrarias comuns).
A fantasia do Velho Testamento
O lapso na porta manuelina acaba por ter a sua piada e funcionar sem querer como um preâmbulo para as delícias informais que esperam o visitante no interior. Primeiro, no entanto, convém entrar na porta ao lado (à da esquadra) e atravessar o pátio, um saguão cinzento, que de imediato se percebe servir de passagem para outro corpo do edifício.
Depois da porta trapalhona, esta é a segunda surpresa: a torre alinhada com a Rua da Mouraria, afinal, não é de origem, mas uma espécie de avançado de outro edifício, um enorme casarão mais recuado e ostensivamente mais antigo. O Colégio dos Meninos Órfão remonta a 1273, quando foi fundado pela rainha D. Brites, mãe de D. Dinis, sob a invocação de Nossa Senhora de Monserrate. Veio a ser reformado pela rainha D. Catarina em 1549 e depois restaurado e ampliado por D. José, em 1754. Ou seja, um ano antes do terramoto, o que quer dizer que mais trabalhos de reparação devem ter sido necessários logo depois. Datará desta segunda intervenção, mais provavelmente, a torre de cantaria branca - que se associa ao programa de regularização das fachadas, no âmbito da reconstrução da cidade -, bem como o saguão tristonho acoplado. Este último desemboca num pórtico monumental, que ostenta as armas do rei D. José I e deveria coroar a porta primitiva, que dava directamente para a rua.
Entra-se finalmente numa portaria decorada com um majestoso lambril de azulejos azuis e brancos. Nos quadros maiores sobressaem as legendas "Victoria de Abram Em Hoba" e "Bênção de Isaac a Sev Fº Jacob" e entre os dois "Nacimento de Ioseph do Egipto". São composições impressionantes, mas indecifráveis para quem não for versado no Antigo Testamento. Mesmo sem entrar no pormenor, recorde-se que a vitória de Abrão em Hoba tem a ver com o resgate do seu sobrinho Lot, que o José aqui invocado é o filho-adivinho de Jacob e que a bênção de Isaac se prende com a rivalidade entre irmãos que deu lugar ao grande sisma das religiões monoteístas.
São, em qualquer dos casos, episódios que envolvem jovens e o Deus severo do Antigo Testamento. Essa é, justamente, a equação que vai sendo desenvolvida ao longo das centenas de azulejos que forram as escadas largas e pouco iluminadas dos quatro andares do casarão. Isto até se chegar aos dois últimos lanços de escadas, ilustrados com cenas do nascimento e da infância de Jesus Cristo, episódios também hoje menos abordados - mas que se enquadram no mesmo espírito de formação católica.
Assim acontece com o último, que ilustra o episódio do "evangelho da infância" de São Lucas, em que o Menino Jesus escapa aos pais para ficar a ouvir e a discutir com os "dotores" do Templo de Jerusalém. Hoje, que a cultura bíblica da maior parte de nós é cada vez mais leve, é difícil divisar um fio narrativo a correr através das escadarias do antigo Colégio de Jesus. Há, no entanto, quem defenda que os painéis contam em conjunto "a história dos antepassados da Virgem - da Casa de David - até ao prenúncio da paixão de Cristo".
Mais seguro é que o revestimento das escadarias cumpria um intuito pedagógico, como explica José Meco, historiador de arte e especialista em azulejaria: "Nós olhamos muito para os palácios, para as igrejas e para os conventos, mas esquecemos que um edifício destes corresponde a um centro de formação actual, a uma grande escola. Isto era uma escola de meninos católicos e, portanto, os azulejos nas escadarias funcionavam quase como um catecismo. Os azulejos eram a televisão ou a Internet da altura".
Certo, mas porquê tanta insistência no Antigo Testamento? Elisa Silió escreveu no diário El País (26.09.11) a propósito da exposição recentemente inaugurada em Valladolid sobre os Primitivos Portugueses (1450-1550) que uma das singularidades da arte portuguesa na época dos Descobrimentos é um maior recurso ao Antigo que ao Novo Testamento. Um sintoma, portanto, do nosso relativo isolamento cultural no contexto da Europa de Quinhentos. É essa mesma tradição que remonta aos Descobrimentos que, por outro lado, encontramos em versão rococó nas escadarias do Colégio da Mouraria.
A obra é atribuída a Domingos de Almeida, o mesmo da capela de Santo António, no Convento da Madre de Deus (José Meco Lisboa, Capital do Azulejo em Portugal). Terá de se conceder, no entanto, que Domingos não era um pintor especialmente dotado. As figuras nas escadarias nem sempre estão bem desenhadas, as composições são por vezes demasiado densas e carregadas. Mas em toda a sua candura, eventualmentekitsch, é um conjunto azulejar de uma fantasia e de uma desmesura surpreendentes. Em resumo, uma peça original do património nacional, que de pleno direito deveria ser elevada a atracção maior de Lisboa.
Já se sabe, porém, que as coisas não se passam nada assim. No antigo Recolhimento do Amparo há agora um Centro de Dia da Misericórdia a funcionar nos dois primeiros pisos, o Inatel gere o seguinte, bem como o campo de jogos nas traseiras. Por último, no piso mais elevado, por detrás de uma porta de madeira, há uma série de quartinhos que antes eram ocupados pelos monges, agora adaptados a apartamentos individuais.
Quem procurar na Internet o Colégio dos Meninos Órfãos vai encontrar uma discussão na Lisboa S.O.S sobre se este tesouro lisboeta deve ou não ser publicitado. Há quem defenda que não, para evitar o vandalismo, e há quem argumente que não importa, que ninguém vai roubar azulejos com uma esquadra de polícia ao lado. É uma longa discussão, até porque noutros lados os azulejos mais secretos são frequentemente aqueles que desaparecem mais depressa. Certo é que a fabulosa escadaria do Colégio dos Meninos Órfãos se conseguiu manter milagrosamente incólume até aos nossos dias.
Requintes decorativos
Descoberto o Colégio dos Meninos Órfãos, é natural que o explorador urbano se pergunte se há mais coisas assim na Mouraria - quer dizer, edifícios com azulejos preciosos, que não façam parte da lista das atracções turísticas do costume. Não encontrará nada tão exuberante, isso é seguro, mas há um par de moradas igualmente interessantes nas redondezas. Uma é o antigo Palácio dos Távoras, no nº21 da Travessa da Nazaré, ocupado pelo Grupo Desportivo da Mouraria, desde 1975. Merecem especial destaque a cozinha toda forrada a azulejos azuis e brancos e as pinturas no salão de jogos, ambos em estilo rococó.
Estas decorações do Palácio dos Távoras devem ser mais ou menos contemporâneas dos revestimentos azulejares do Recolhimento do Amparo, mas a qualidade não é a mesma. José Meco defende que "na escadaria do Colégio dos Meninos Órfãos os motivos já são rococó, mas o edifício ainda tem características joaninas-barrocas (pilastras, barras direitas, etc.)". "Já o Palácio dos Távoras está dentro do último grito da moda rococó. Depois estes azulejos são muito mais finos, muito mais requintados, mesmo se não têm a fantasia dos outros."
O Palácio dos Távoras também tinha uma sala decorada com pinturas a fresco do século XIX com vistas do Palácio da Pena, mandadas abater pela mesma edilidade que é actual proprietária do imóvel. Já a presença do Grupo Desportivo da Mouraria acaba por dar vida e de certo modo contribuir para preservar o espaço, onde agora se treina luta greco-romana e anualmente se prepara a Marcha da Mouraria.
Um pouco mais acima, no Largo do Intendente Pina Manique, encontra-se a antiga Fábrica Viúva Lamego, caso exemplar da moda de revestir fachadas de prédios a azulejos, popularizada em meados do século passado. Fundada em 1849, a fábrica produziu objectos utilitários em barro vermelho, inflectindo para a produção mais artística de azulejos e faianças em 1863. A empresa fez questão de ostentar a subida do nível na fachada do edifício de dois pisos, revestida de alto a baixo por azulejos com a assinatura de Ferreira das Tabuletas, então o seu novo director artístico.
No piso térreo estão representados dois orientais e duas figuras da mitologia grega, recriadas para representarem o comércio e a indústria - ou seja, os novos deuses do século XIX. Já no piso superior são jarrões de flores e brincadeiras: um papagaio no poleiro e um macaco a apanhar fruta. Finalmente, em redor do óculo que domina o frontão, estão grinaldas e figuras angélicas. Refira-se, por curiosidade, que havia outro edifício com uma fachada igualmente festiva na rua da Imprensa Nacional, mas o prédio foi entretanto demolido. Tudo o que a câmara conseguiu recuperar foram os azulejos da fachada, que estão encaixotados, à espera da criação do núcleo de azulejaria, há muito prometido para o Museu da Cidade.
Adiante: a produção da Viúva Lamego transferiu-se para a Palma de Baixo, ao pé do Hospital de Santa Maria, nos anos 30, mais recentemente para a Abrunheira em Sintra, mas a loja principal manteve a morada no Largo do Intendente. A grande novidade foi a transferência, há coisa de um ano, do gabinete do presidente da edilidade, António Costa, para um dos edifícios do antigo armazém, que em breve também deverá acolher um espaço de exposição.