Esfahan e o mito do Paraíso
Os persas antigos diziam que foram eles os inventores do Paraíso. A palavra surgiu no tempo de Ciro, o Grande, para designar os jardins do seu palácio em Pasargada. No planalto iraniano, atravessado durante milénios por invasores vindos de múltiplos azimutes, parcelas de heranças culturais ali acumuladas sobreviveram sempre a períodos de violência e barbárie.
Desde Sialk, cujo sítio arqueológico, com 7000 anos, me comoveu, houve continuidade na criação de coisas belas, na transmissão do saber. Sementes de civilizações destruídas ou rudemente golpeadas fecundaram de modo permanente culturas que, em cadeia ininterrupta, surgiram nos oásis emoldurados por montanhas ciclópicas. Esfahan é talvez o mais expressivo exemplo dessa enigmática vocação dos povos iranianos para passarem de fases trágicas a um renascimento explosivo, inovando com imaginação no campo da cultura.
Esfahan (hoje com 2 milhões de habitantes) ilumina bem esse estranho fenómeno da continuidade e interacção das grandes culturas. A cidade dos séculos XVI e XVII é um hino ao génio persa. A alegria de viver parece ali brotar dos palácios, mesquitas, jardins e fontes que fizeram da capital dos safévidas o paraíso terrestre do Islão.
O Zayandeh, o rio que banha Esfahan, é um rio estranhíssimo. Desce dos cumes nevados da cordilheira do Magros, percorre planuras que transforma num oásis de fartura, atravessa a cidade, onde se espraia, perguiçoso, e após uma centena de quilómetros, morre nos areais do deserto. São muitas as pontes seculares que o cruzam. Na mais bela, um rei fez instalar a meio, de cada lado, palacetes octogonais com motivo decorativos que estimulam a imaginação. Quando Esfahan passou a capital, o Xá Abbas I fez dela a mais bela e civilizada cidade do mundo islâmico, ultrapassando o Cairo e Istambul. A sua fama correu mundo. Da China, da Índia do Grão- Mogol, até da França chegaram viajantes, sábios e artistas para conhecer o paraíso terrestre criado pelo mecenas da Pérsia.
Na despedida de Esfahan fomos tomar chá numa esplanada debaixo de uma ponte construída há quase quatro séculos. O Zayandeh corria pelos canais, sob os arcos, despenhando- se em cascatas espumejantes para um nível inferior, onde a corrente retomava a sua lentidão. Nos degraus que baixavam até à água, centenas de pessoas, jovens e velhos, conversavam, sentados, gozando o frescor da noite.
O passeio findou na Praça do Imã, Património da Humanidade. Com 650 metros de comprimento e 150 de largura, emudeceume. O edifício de dois pisos que a abraça a toda a volta atraía uma densa multidão que circulava sob as arcadas onde se abrem centenas de lojas. Duas mesquitas fascinantes e um palácio real, incrustados na estrutura da gigantesca praça, transportam o viajeiro pelas estradas da imaginação aos esplendores da arte safévida, quando a Pérsia emergia como o pólo da cultura islâmica oriental.
Senti ali que a lei da vida não me permitirá voltar. Mas também que a Esfahan safévida, como a Persépolis aqueménida, se tornaram parte de mim. O sortilégio de ambas, distanciadas por vinte séculos, é inseparável da atitude do povo persa perante os antepassados, assumida pelas novas gerações, atitude identificável na qualidade de vida que lhes marca o quotidiano.