Fugas - Viagens

  • Fábio Teixeira/Arquivo
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No comboio-hotel que cruza a noite ibérica

Por Carlos Cipriano

Na era do "low cost", o comboio resiste. Por romantismo ou por ser mais prático para alguns. Sinal dos tempos, os dois comboios internacionais que ligam Lisboa a Madrid e a Paris agora são apenas um, até se separarem em Medina del Campo. Fomos saber como é hoje este universo numa noite ibérica de Inverno.

Viajar num comboio destes é como embarcar num cruzeiro. Apagam-se as luzes da cabine e em vez do luar sobre o mar, vislumbram-se no escuro árvores, postes, montes e casas a passarem velozes pela janela. Beira Alta acima, adivinha-se ao fundo a serra da Estrela, luzes isoladas de aldeias e apeadeiros onde o comboio não pára. Chove.

Cá dentro está-se confortável e quente, a cama está feita, a luz de presença convida a ler antes de adormecer. É uma da manhã. Segundo o horário, circula-se entre as estações de Mangualde e Celorico da Beira. O comboio só voltará a parar na Guarda e em Vilar Formoso, onde a locomotiva da CP dará lugar a uma máquina da Renfe, que rebocará a composição do outro lado da fronteira. Mas por agora, são horas de dormir. 

A viagem começara às 21h18, quando o comboio de 18 carruagens partiu de Santa Apolónia. Em rigor são dois comboios num só porque a primeira metade segue para a fronteira francesa de Hendaya e as nove carruagens detrás vão para Madrid. Em Medina del Campo, às 5h40 da madrugada, um ferroviário espanhol a tiritar de frio irá desengatar duas carruagens cortando o comboio ao meio, seguindo cada uma das metades para o seu destino.

Na gare do Oriente, onde o Sud e o Lusitânia têm dois minutos de paragem, a longa composição dá nas vistas por ser invulgarmente baixa e por as carruagens serem muito curtas. Viajamos num Talgo Pendular, um comboio de tecnologia espanhola na qual cada par de veículos assenta num par de rodas comum a ambos, diminuindo assim o peso e o atrito sobre os carris. As carruagens, por sua vez, não estão assentes ao nível das rodas como nos comboios normais, mas sim ao nível do tejadilho, funcionando como o pêndulo de um relógio de sala. Por isso, nas curvas, as carruagens inclinam-se de forma automática e natural, consoante a velocidade é maior ou menor, o que aumenta o conforto dos passageiros e permite que o comboio circule mais depressa. Os Talgo circulam desde os anos 1950 e a versão Pendular é de 1980.

O compartimento da carruagem Gran Classe, de tons vermelho e rosa desmaiados, tem dois lugares que são transformados em camas e uma casa de banho privada com lavatório, WC e duche. O espaço, naturalmente pequeno, é engenhosamente bem aproveitado. A bolsinha que tem os logótipos da CP e da Renfe contém gel, sabonete, shampoo, escova de dentes, dentífrico, lâmina e creme de barbear, touca, lenços de papel, kit de costura, chinelos e graxa para os sapatos. Mas o quarto só serve para dormir porque a vida a bordo faz-se no bar e no restaurante. Para já, atente-se aos pormenores. Estamos num comboio-hotel: o passageiro tem um cartão perfurado para abrir e fechar o seu quarto e o preço da viagem inclui o jantar e o pequeno-almoço a bordo.


Sem pressa


Não há pressa. Alhandra, Alverca, Vila Franca de Xira, Azambuja. A periferia de Lisboa passa a correr pela janela do compartimento, uma sessão de luzes amareladas, prédios, fábricas, armazéns. Abrindo-se a porta do compartimento para o corredor, avista-se o Tejo.

Como as carruagens são muito baixas, sente-se o ruído da roda sobre o carril, que, no caso da linha do Norte, se acentua nos troços ainda não modernizados. Quinze anos e vários governos depois de estas terem começado, ainda há partes que estão na mesma. 

Um Porto é um aperitivo oportuno num comboio cuja restauração está a cargo de uma tripulação portuguesa. O rissol vem acompanhado de raminhos de salsa e o tinto alentejano abre-se ainda antes da salada de fusili com salmão fumado. Segue-se um entrecôte e na sobremesa a escolha recai sobre uma tarte de amêndoa, que já se acompanha com um café e um digestivo.

Dito assim parece que o jantar foi consumido num ápice. Nada disso. Nas viagens de comboio é uma arte fazê-los durar. Este durou entre o Entroncamento e Santa Comba Dão. Segundo o horário, e com rigor de ferroviário, entre as 22 horas e 24 minutos e a meia-noite e 15 minutos. Quem não resiste ao vício, aproveita as paragens em Caxarias, Pombal e Coimbra para fumar apressadamente um cigarro no cais da estação.

O restaurante tem tons azulados que contrastam com o preto e branco das toalhas de mesa. Luzes indirectas e um design sóbrio dão-lhe uma atmosfera acolhedora. Sem paisagem, porque lá fora a escuridão é total, tudo convida a que os viajantes se voltem para o interior. Neste microcosmos as pessoas cumprimentam-se, cúmplices, como se houvesse algo de especial por estarem aqui a meio da noite a jantar à velocidade de 140 Km/hora.

Com excepção do PÚBLICO, não há mais portugueses no restaurante. Marisa é brasileira e viaja em classe turista. Prefere demorar uma noite a chegar a Madrid em vez dos 50 minutos do avião. "É confortável para descansar e dormir, é tranquilo, não é caro, sai e chega à hora marcada e não tem overbooking", explica, acrescentando que é a segunda vez que viaja neste comboio.

Na mesa ao lado jantam uma angolana residente em Cuba, duas cubanas e um cubano. Foram a Fátima durante a tarde e voltaram para Lisboa de carro para apanhar o comboio, ignorando que bastaria tê-lo apanhado em Caxarias, a 25 quilómetros do santuário. Preferem o comboio para descansarem durante a noite, mas acham que "é caro e o serviço não é muito bom". É a terceira vez que viajam no Lusitânia.

Jorge Esteban, quadro de uma empresa industrial espanhola, é um habitué do Lusitânia. Vive em Valladolid e reparte o seu trabalho entre Madrid, Tarragona e Portugal. O Lusitânia, diz, é uma excelente opção nas suas viagens de trabalho, em complemento com o carro e o avião. 


Erasmus a bordo


À meia-noite a carruagem-bar, ao lado da carruagem-restaurante, tem um ambiente muito diferente. Basta atravessar o estreito corredor que as separa e a atmosfera intimista de uma dá lugar a um espaço amplamente iluminado, onde um grupo de espanhóis ocupa todo o balcão. Pelas gargalhadas e tilintar de copos e garrafas, parece que estamos num bar madrileno. São jovens estudantes Erasmus e fazem parte de um grupo de 30 que embarcou em Coimbra. Ana Alvarez e Ivan Rodriguez estudam Direito. Quando chegarem a Madrid, cada um apanha um avião. Ela vai para Santander e ele para Cartagena. Outros colegas farão o mesmo, excepto os que vivem na capital espanhola. E explicam: este comboio directo de Coimbra para Madrid dá-lhes mais jeito e é mais barato do que irem a Lisboa ou ao Porto apanhar o avião. 

Maria Luísa Martins tem mais do dobro da idade dos seus vizinhos de balcão. Aos 75 anos faz esta viagem uma vez por mês, desde que, há 25 anos, foi viver para Espanha. "Não gosto de andar de avião e ainda por cima o comboio agora é directo de Coimbra para Madrid", conta. E há outra razão pertinente: como idosa, só paga meio bilhete. Por 70 euros vai e vem a Madrid. Em lugar sentado, sem direito a cama. "Mas durmo o tempo todo, é uma viagem tranquila", remata.

O Lusitânia e o Sud procuram responder a vários segmentos de mercado. O preço do Lisboa-Madrid vai desde os 60,50 euros em turista até aos 203,50 euros em Gran Classe Single. Pelo meio há ainda as classes de Cama Turista e de Cama Preferente, e combinações possíveis de grupos de três ou quatro pessoas num compartimento, bem como preços diferentes para crianças, idosos e em bilhetes de ida e volta.

Vilar Formoso, Salamanca, Medina del Campo, Ávila. Dorme-se embalado pelo andar do comboio, mas acorda-se nas estações, sobretudo quando as paragens se eternizam. Às seis da manhã (sete na hora espanhola) o diligente funcionário da Servirail acorda, através do telefone interno, os passageiros das carruagens-cama.

Lá fora é noite escura, mas a julgar pela quantidade de túneis, pontes, trincheiras e aterros, nota-se que o Lusitânia atravessa agora a serra de Guadarrama. Apesar das curvas, é impossível tombar para o lado no estreito habitáculo do duche. Mas é preciso algum equilíbrio ao fazer a barba.

Segue-se o pequeno-almoço. Sabe bem o café com leite quentinho, as torradas, o croissant... Mas é um pouco confrangedor, quando o comboio pára ou passa devagar em alguma estação, sentir os olhares indiscretos dos que, nas plataformas, aguardam o comboio suburbano que os vai levar para o trabalho em Madrid.

A manhã, invernosa, é adensada por uma neblina e uma humidade cortante, mas à qual o comboio-hotel parece blindado. Cá dentro está quentinho. Tempo ainda para um café expresso. A estação de Chamartín aparece sem aviso prévio. São 8 horas e 20 minutos quando o Talgo se imobiliza. Pontualidade britânica no coração da Península Ibérica. 

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O PÚBLICO viajou a convite da CP

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