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  • O livro de Tiago Salazar (com olhos de Cristina Branco)
    O livro de Tiago Salazar (com olhos de Cristina Branco) DR

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O fado do viajante tem sempre versos de amor e saudade

Constante é a demonstração dos afectos e desejos, o amor tornado público pelos filhos, pelos avós, por alguns dos escritores preferidos, como Tagore ou Clarice Lispector e Henry Miller (que o autor trata por mãe e pai), mas principalmente pela mulher. “Se estou a viver um amor agora, e espero vivê-lo longamente e virtuosamente, porquê adiar a sua celebração?”, questiona.

Ao contrário dos livros anteriores do jornalista, Hei-de Amar-te Mais tem poucas descrições sobre os países visitados, a história dos locais ou os encontros de estrada, mas sim as emoções vividas a cada momento, breves pensamentos e reflexões. Não ficamos a conhecer Istambul, por exemplo, mas descobrimos no auto-retrato que inicia o livro que no domingo de Páscoa de 2010 se olhou ao espelho de um hotel na cidade turca, o sétimo por onde passava naquele mês, e se sentiu “um velho encarquilhado numa solidão terrível”. “Fui muitas vezes a Istambul [como guia de viagens literárias] e se calhar aí funcionou muito o efeito de repetição. Vendo coisas novas não sentiria isto tão na pele”, recorda agora.

No Brasil, de onde chegam alguns dos desabafos mais sofridos do livro, o catalisador da escrita foi sobretudo a saudade. “Nada supera essa ausência tão prolongada”, revela. Em 2011, para as gravações da segunda edição do programa Endereço Desconhecido, o jornalista percorreu o país desde o Amazonas até Rio Grande do Sul em duas viagens, uma durante mais de 60 dias, a outra por mais de um mês.

“Nunca tinha estado tanto tempo sem os meus filhos, é de facto muito difícil”, conta Tiago Salazar, acrescentando à dor da saudade “o grande contraste que é veres aquela alegria de viver dos brasileiros e não estares a partilhar aquilo, aquela beleza toda”. Então escrevia, escrevia e “todos os dias contava os dias” para voltar a estar com a mulher, para se “sentir inteiro na vida” como só acontece quando está com Cristina e os filhos.

Mas atenuará a escrita a saudade? Muito provavelmente não, mas “pelo menos põe em perspectiva muitos destes sentimentos e ao mesmo tempo vou-os partilhando”, primeiro com a família, agora com o público.


Hei-de Amar-te Mais | Excertos

2010, Dia de Páscoa (in medias res), Istambul
Auto-retrato

Tenho quarenta anos, saúde de ferro, os dentes quase todos, cabelo farto de querubim, força de mancebo, leitores que me dizem «o senhor Tiago faz-me sonhar» ou «a sua escrita é um bálsamo», tenho uma mulher, filhos, laços de família, e neste espelho de hotel, o sétimo onde aterro no último mês, sou apenas um velho encarquilhado numa solidão terrível. A posologia diz «recuperador do humor». Será como um recuperador de calor? Neste chão de hotel varrido de melancolia que é o meu território por cinco dias só a Patagónia, ou tu, meu amor, conviriam à minha infinita tristeza.

Olho os telefones, duas redes que me ligam ao mundo, o único caminho até ti. Uma vez falei-te do deserto, em Marrocos, ainda os telefones voadores (como lhes chamas) eram como varas de feiticeiro. No meio do nada, deposto como uma pedra, um beduíno ensinara-me o canto de um velho poema sufi, a prosa do amor interminável, e por Alá não me ter abençoado com a voz dos pastores do deserto entoei-to humildemente letra a letra. Paro a escrita que nunca pára e quero dizer-te ao ouvido, amo-te, pertenço-te desde muito antes desse deserto de onde te disse a primeira vez é aí dentro de ti que quero viver. Pego então no meu zepelim e vamos namorar a cidade nocturna às gincanas entre os minaretes

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