“Fiz visitas guiadas em Memphis, na mansão de Elvis Presley, Graceland. Depois estive uns tempos no Lorraine Motel, também em Memphis, onde assassinaram Martin Luther King. Depois fui para a Califórnia, fazer as visitas ao Ambassador Hotel onde assassinaram o senador Robert Kennedy.” Aí, as coisas tornaram-se um bocadinho mais difíceis, porque em Los Angeles não havia propriamente uma estrutura organizada, um museu ou uma casa-museu de cuja “boleia” Charles Billups pudesse beneficiar. Foi preciso sacar dos trunfos todos, improvisar. Charles, que em tempos fora cozinheiro, teve de se insinuar junto do chef do Ambassador (foi na cozinha deste restaurante que Sirhan Sirhan emboscou Robert Kennedy em 1968, recorde-se) e o negócio lá acabou por se fazer. A troco de umas massas por cabeça, Charles pôde iniciar as visitas turísticas clandestinas ao local. Não sem antes levar a cabo a sua pesquisa acerca das circunstâncias do crime. Sim, Charles Billups faz questão de sublinhar que é um profissional sério, não anda a vender gato por lebre.
Um turista passa junto de nós, Billups salta sobre a presa, retoma o seu tom mecanizado, impinge-lhe a história estafada do homem do chapéu-de-chuva preto que, postado sobre duas lajes especiais do passeio da Elm Street (“Repara, são de uma cor diferente das outras, certo?”), fez sinal ao atirador para disparar o primeiro tiro. Gesticula com veemência, erguendo três vezes um chapéu-de-chuva imaginário, num folhear célere encontra a página da revista com a imagem certa, um fotograma do filme Zapruder onde surge o tal fulano da sombrinha, e mente descaradamente, dizendo que o dinheiro da venda das revistas reverte para a manutenção e limpeza da Dealey Plaza. O turista parece hipnotizado, apressa-se a comprar a revista, passa-lhe para a mão a nota de vinte dólares.
Billups ajeita a pesada sacola a abarrotar de revistas que traz a tiracolo, retoma a conversa comigo e, ante o meu comportamento talvez atípico, muda de táctica. “Sabes, a polícia tem câmaras de infravermelhos aqui na praça, no alto dos prédios.” Quando penso que vou ver emergir mais um tentáculo do polvo conspirativo, logo me desengano. O polvo agora é outro. “Há uns tempos, um tipo tentou vender droga aqui na Dealey Plaza. Já era quase de noite, mas caçaram-no com as câmaras, filmaram o número da nota que o outro lhe deu.” Hum... estou portanto metido numa reedição da cena do Taxi Driver em que o traficante de armas se vira para Robert De Niro e lhe pergunta: «O que é que queres mais? Droga? Charros? Mescalina? E que tal um Cadillac? Queres que eu te arranje um Cadillac cor-de-rosa?» Acabo por lhe dar cinco dólares para posar para uma fotografia do Peter. Aqui, na Dealey Plaza, tempo é dinheiro, e ele desperdiçou imenso tempo comigo.
Regressamos no dia seguinte, às seis da manhã, a tempo de assistirmos aos primeiros passos deste bailado fascinante. Aproxima-se de mim um fulano branco, de rosto e corpo bastante enfrangalhados pelas investidas do tempo. Chama-se Ronald D. Rice, e se ontem nos calhou o globetrotter do turismo sanguinolento, hoje estamos perante o decano dos guias da Dealey Plaza. Ron considera-se superior (muito superior, até) aos restantes pseudoguias que aqui ganham a vida. “Sou o guia que anda nesta praça há mais tempo — dezanove anos seguidos.” Caso único, não vende revistas nem jornais. Em vez disso, traz debaixo do braço dois grandes cartões plastificados com uma panóplia de imagens e diagramas respigados aqui e ali para lhe servirem de muleta nas suas explicações. Fotografias macabras, desfocadas, feias, como não podia deixar de ser. “Não cobro uma quantia certa. Vivo exclusivamente das gorjetas. Quem não gostar da minha visita guiada não tem de pagar sequer um cêntimo.” Faltam-lhe os dentes da frente, fuma sem parar, tem os cantos dos olhos descaídos, a pele curtida e áspera. Diz que a praça nunca esteve tão bonita, tão limpa e arranjada, mas que os turistas são muito poucos, em comparação com o passado. Nos tempos que se seguiram ao filme JFK, de Oliver Stone, de 1991, os visitantes eram aos magotes, e Ron chegou a conduzir visitas para grupos de 40 ou 50 pessoas. “Agora isto está às moscas, nem mesmo o quinquagésimo aniversário vai trazer muita gente. Mal dá para uma pessoa sobreviver. Tenho a minha pensão de veterano, mas é uma ninharia, ao fim de quatro ou cinco dias já não me sobra nada.”
Afirma ter sido ele quem traçou no asfalto da Elm Street as duas cruzes brancas a assinalar os lugares do primeiro e do segundo tiros que atingiram Kennedy há cinquenta anos. “Mas este ano vou-me reformar, estou cansado disto tudo. Daqui em diante, não sei quem irá retocar as cruzes de cada vez que estiverem estragadas.” Varre a praça com os olhos constantemente, em busca de potenciais alvos para exercer o seu ofício, afasta-se de mim sempre que vê um transeunte promissor, garante-me que irá voltar para continuarmos a conversa. São oito da manhã, é dia de semana, aos poucos o trânsito adensa-se. De vez em quando passa um comboio a ranger, clamoroso, no viaduto por baixo do qual o Lincoln negro presidencial desapareceu a acelerar, com o presidente moribundo ou já morto no banco de trás.
Aproveitando uma pausa na conversa, decido proceder a um exercício. Naquela sexta-feira de 1963, logo após o último tiro, um polícia da escolta saltou da moto e correu pela escada que sobe ao encontro da vedação de tábuas, no alto do grassy knoll, porque lhe pareceu ter visto ali uma nuvem de fumo. A escada tem 21 degraus, separados em dois lanços. Largo a minha moto imaginária junto ao passeio, corro pela escada acima o mais depressa que consigo, chego ao limite da vedação de tábuas, irrompo no parque de estacionamento que já aqui estava há meio século. Volto para trás, recomeço. Faço várias tentativas: a minha média é de 15 segundos. Dá tempo de sobra para um atirador esconder a arma no porta-bagagens de um carro, para ele próprio se esconder. E pronto, acabo de dar o primeiro passo para entrar no clube dos conspiracionistas encartados. A parte de trás das tábuas da vedação funciona como mural onde, numa absoluta democracia e respeito mútuo, se alinham lado a lado as mensagens mais contraditórias pelo punho de visitantes anónimos, sem que ninguém apague, risque ou mutile os dizeres alheios. Troça e pesar, desvario e grandiloquência coexistem pacificamente. “O assassino foi o motorista.” E ao lado: “Que se f... a Reserva Federal.” E ao lado: “R.I.P. JFK”, com o esboço de uma pequena sepultura que parece saído de um desenho animado.
De longe, vejo Ron abordar um jovem casal de turistas no relvado central. O rapaz furta-se, faz um gesto de recusa com as mãos, visto assim de repente Ron é talvez um bocadinho assustador. Mas ele não se deixa vencer às primeiras, abre os braços, mostra-se conciliador, exibe os cartazes, leva a sua avante. A visita guiada, que começou junto à enorme bandeira americana, vem terminar um quarto de hora depois junto ao pedestal onde o agora famoso Abraham Zapruder, à época anónimo vendedor de roupa feminina, se empoleirou para filmar a passagem de Kennedy, com uma assistente a agarrar-lhe as pernas para não se desequilibrar. O jovem casal de turistas paga-lhe, agradece, afasta-se. Eu e Ron retomamos a conversa interrompida.
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