À medida que os outros guias vão chegando à Dealey Plaza, ele aponta-mos e diz deles o que Mafoma não diz do toucinho. “Aquele ali é um drogado, fuma crack, vive numa casa ali em cima, do outro lado do viaduto, com mais três viciados.” Indico Charles Billups, que avisto lá ao fundo, junto à loja do museu, a fazer pela vida, falo a Ron da conversa que tive na véspera com o seu rival. “Devias ter-lhe perguntado por que é que correram com ele de Memphis. Estes tipos são todos uns drogados, vendem droga nas ruas aqui à volta. Ainda têm a lata de se dizer guias turísticos. Só querem impingir aquelas revistas, não sabem peva do que aqui se passou.” Não há nada como denegrir a concorrência para tentarmos promover o nosso produto neste mundo cão.
Nasceu em Indianapolis, Indiana, tinha oito ou nove anos no dia do atentado, estava na sala de aula. Começaram a chegar os autocarros escolares muito antes da hora, Ron e os colegas viram-nos pela janela, ficaram em pulgas. A voz do director pelo sistema de som anunciou que o presidente fora assassinado, que a escola ia fechar por aquele dia. Mas depois o director deve ter achado que alguns garotos não conheciam a palavra “assassinado”, e então repetiu: “O presidente foi morto.” E, durante o fim-de-semana inteiro, nem um único desenho animado na televisão, só notícias em todos os canais, é disso que Ron se recorda melhor.
Pergunto-lhe se gosta de Dallas. Hesita, ou talvez seja só uma pausa teatral. “Gostar, gosto. Mas acho que não me vou apaixonar por ela.” Depois de umas boas gargalhadas, acrescenta que os texanos não são lá muito simpáticos, tratam os outros exactamente como os outros os tratam a eles: são afáveis com as pessoas afáveis, rudes com as pessoas rudes. Observa que muitos habitantes de Dallas têm vergonha pelo facto de o presidente ter sido assassinado na sua cidade, mas que há seis ou sete outras cidades dos Estados Unidos que não se importariam nada que o crime tivesse ocorrido numa das suas praças, para ganharem fortunas com o turismo. Acaba a repetir os seus queixumes, que o movimento na Dealey Plaza já não é o que era, que se vai reformar no final do ano, que as duas cruzes no asfalto vão deixar de ser substituídas, os carros que passam irão apagá-las, a chuva e o sol irão esfarelá-las aos poucos sem que ninguém faça nada. Faz pose para a fotografia do Peter com um ar cansado, recebe a minha nota de cinco dólares, dita-me a sua morada e pede que lhe enviemos um dos retratos, porque precisa de renovar o cartão de identificação que traz ao pescoço numa pequena mica, como os meninos das escolas quando vão em visita de estudo. Penso com os meus botões que talvez ele não se vá reformar assim tão cedo, afinal de contas.
No momento em que nos afastamos, ele ergue a mão para se despedir, diz-nos adeus, e eu vejo no seu olhar tisnado por mil sóis e sinto naquela sua voz áspera como lixa a convicção resignada de que não iremos cumprir a promessa, não lhe iremos enviar a tal fotografia. Engana-se.
Multimedia
Mais
Continuação: página 3 de 4