Encontramo-la sozinha, sentada num banco virado para a catedral. Tem um livro na mão — Seis sombreros para pensar — e um olhar diferente do nosso, mais desassombrado. Pudera: Eliana Serrano, 18 anos, nasceu aqui e por mais que ache a sua cidade “preciosa” conhece-a de cor e salteado. Quase poderia fechar os olhos e descrever-nos o que se passa aqui, agora, na Plaza de Armas de Cusco, 14h15 de uma quinta-feira de Novembro.
Aninhada entre montanhas, a cidade inteira parece convergir para aqui, para este lugar que foi outrora o coração do império inca. Em pano de fundo, a música tradicional andina que vem sabe-se lá de onde é cortada pelo bater compassado dos calceteiros que reparam a rua defronte da catedral. Engraxadores de sapatos esperam por pés que passem sem pressas; mulheres em trajes tradicionais, bem garridos, deixam-se fotografar a troco de um nuevo sol, a moeda peruana; um rapaz descalço vende bolachas caseiras; crianças de escola (do Colégio Santo Tomás) correm atrás dos pombos; turistas folheiam guias em várias línguas; casais de namorados trocam mimos discretos; vendedores de ocasião oferecem capas para a chuva, que o céu ameaça desabar a qualquer momento.
Eliana observa a catedral, que domina a praça, embora os mais distraídos a possam confundir com a Igreja da Companhia de Jesus, no outro lado do quadrado em redor do qual sobressaem as varandas de madeira ornamentadas e os arcos da era colonial. Aos nossos olhos, é um presépio, esta Plaza de Armas, mas Eliana, dizíamos, olha para Cusco — e para o Peru em geral — como quem olha para o outro lado do espelho.
“Tudo isto me encanta. A cidade é linda, adoro o clima desta região, mas depois há um país que não sabe muito bem para onde vai.” Eliana estuda contabilidade na Universidade Austral de Cusco e diz que o faz também “para poder ajudar” o Peru. “Os políticos não sabem muito bem o que podem fazer pelo país”, avalia. Mandasse ela e as prioridades seriam estas: “Primeiro, é essencial ter uma boa economia e um sistema de ensino desenvolvido; depois, é preciso, e rapidamente, ajudar os muitos pobres que temos no nosso país.”
Sacudidas estas pedras do sapato, entende Eliana, o Peru é o melhor país do mundo para se viver. Nunca passou a fronteira, tão-pouco foi a Lima, a capital — as suas viagens limitaram-se a “Urubamba, Puno, Pisac, Arequipa”. “Adorava conhecer Itália” mas sabe que, pelo menos para já, é “impossível”. Contenta-se, pois, com o que está mais à mão: sempre que pode gosta de ir “ao campo, procurar vento e liberdade, respirar”.
Respirar — é mesmo disso que precisamos agora. Não que a conversa de Eliana nos tire o fôlego, é mais a nossa falta de hábito a um ar tão rarefeito. Temos apenas um dia de Peru no currículo e ainda não estamos familiarizados aos 3400 metros de altitude de Cusco. Não vamos fugir para o campo, como faz Eliana, deitamo-nos antes a deambular ao acaso pelas ruas de Cusco, pé ante pé, bem devagar. Sem bússola que nos oriente, penetramos no dédalo de ruas que saem da Plaza de Armas e em menos de nada estamos na Plaza San Francisco, um nicho mais recatado de cidade. Recheada de árvores nativas — queuña, chacha, molle — que lhe dão um ar muito lá de casa, aqui também se pode sentir o pulso à cidade, embora a um ritmo mais descontraído, pelo que este pode muito bem ser um spot alternativo à vibrante praça onde tudo acontece em Cusco.
De qualquer forma, quer-nos parecer que todas as ruas vão dar ao mesmo sítio. Andamos sem mapa a descobrir outros poisos, mas cá estamos, de novo. E acabamos por aceitar o convite de uma funcionária sorridente e subimos ao Plaza Restaurant, com uma vista impagável para a praça. Pedimos um chocolate quente e, com ela a mirar-nos, do outro lado da rua, passamos em revista a visita da manhã à catedral de Cusco. É um must see da cidade. Construída a partir de 1559, numa empreitada que se prolongou por perto de 100 anos, é um dos principais repositórios em Cusco de arte colonial, assegura o guia Lonely Planet do Peru. Foi edificada em cima do palácio de Viracocha, o oitavo inca, com pedras que os colonizadores espanhóis transportaram das ruínas de Sacsayhuamán, um impressionante exemplo de arquitectura militar inca.
Quando conceberam Cusco, que se tornaria a capital do império, os incas pensaram-na em forma de puma (o primeiro inca foi Manco Cápac, que reinou no século XII, mas terá sido Pachacutec, o nono inca, já no século XV, e depois de um período expansionista, a fundar a cidade, elucida o Lonely Planet). Sacsayhuamán foi idealizada como a cabeça do animal, o templo de Koricancha como a cauda e Cusco em si — Qosq’o (o centro do mundo) em quíchua, a língua-mãe dos incas, ainda hoje amplamente falada no Peru — , como o seu corpo. Visite-se Sacsayhuamán, numa colina sobranceira à cidade, e o Koricancha, bem no centro de Cusco, sem pressas de qualquer espécie e estará feita a introdução básica à cultura inca, fundamental para se entender o passado e o presente do Peru.
Este presente é também o que se lê nos jornais. Deixámos a praça para trás e viemos parar à Biblioteca Municipal de Cusco, na Calle Santa Catalina Ancha. Está praticamente lotada — a sala principal sobretudo com estudantes, a zona de hemeroteca com pessoas de várias idades, mas todos homens, que lêem desde o La Republica até ao La Primera, passando pelo Peru 21 ou El Comercio. Um destes homens, com um boné preto enfiado na cabeça, tira apontamentos das notícias do El Sol num caderno quadriculado. “Almacenarán cinco millones de agua en Ccorcca”, é o título do artigo que lê.
Juan José, 34 anos, lê o futuro na soleira da porta da biblioteca. De auscultadores nos ouvidos, parece indiferente a tudo o que se passa à sua volta. Fica assim quando desenha, como se o mundo fora do papel que tem na frente não existisse. Não é antipático, mas é pouco expansivo. Nunca o vemos sorrir, raramente nos olha de frente — como se realmente não houvesse vida para além daquele rosto que está a esculpir a lápis. Veio de Tacna, bem no Sul do Peru, há uns 10 anos, porque em Cusco “é mais fácil fazer negócio”, e já sente a cidade como sua. Seja como for, também diz que não precisa de muito: vende os quadros a 30 ou 40 nuevos soles, qualquer coisa entre os 7 e os 10 euros, e sente-se mais ou menos satisfeito. Desenha aquilo que os turistas, os seus principais clientes, mais procuram: motivos incas, reproduções de Machu Picchu, o grande íman do Peru, paisagens do país. Desde pequeno que trabalha com “artesanías” e sabe que nunca há-de sair do ramo. “É para isto que tenho jeito, o meu futuro também há-de ser aqui.”
Um futuro bem diferente do que perspectivam para si Bruno e Vinícius, dois jovens brasileiros que encontráramos na esplanada do Plaza. São amigos de infância e estudam arquitectura na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chegaram a Cusco há dois dias e já falam dela como se a conhecessem desde sempre. “É uma cidade incrível. A arquitectura interessa-nos particularmente e Cusco soube conjugar muito bem épocas e estilos diferentes”, aponta Vinícius. Se o trabalho em pedra das antigas paredes que ainda se vêem aqui e ali lembra que foram os incas a fundar a cidade, os elementos coloniais espanhóis — de que as igrejas, os arcos e as varandas ricamente trabalhadas serão os exemplos maiores — contam uma outra história, de cerca de três séculos. Os espanhóis chegaram em 1532 e o Peru tornou-se independente em 1824 — e isto explica muita coisa. Explica, por exemplo, o lado mestiço da cidade, e explica esta mistura colonial e andina que enfeitiça quem chega. “Esta Plaza de Armas é inigualável”, aprecia Bruno.
Como inigualável deve ter sido a noite de ontem, arriscamos nós agora. “A melhor maneira de conhecer a cidade é perder-se nela — é um cliché, mas funciona mesmo, veja só. Ontem começámos na Plaza de Armas, claro, fomos parar a uma rua próxima do Regocijo, já não sei ao certo qual, e encontrámos um grupo de americanos com quem fomos beber sour ao Museo del Pisco”, rebobina Bruno. Alto lá — chegámos à bebida nacional do Peru e isto é um caso bem sério.
O Museo del Pisco (Calle Santa Catalina Ancha) tem nome pomposo mas na realidade é um bar com música animada onde o pisco é rei. A bebida-bandeira do Peru é feita de uvas “fermentadas e destiladas uma vez”, explica-nos Sergiu Dirzu, um dos barmen de serviço neste fim de tarde. As uvas são depois guardadas em reservatórios de barro — alguns exemplares espalham-se pelo bar —, por forma a que não haja alteração das características organolépticas. E do pisco chega-se ao pisco sour: três onças e meia de pisco; uma onça de lima; uma onça de xarope de goma (um concentrado de açúcar); uma clara de ovo; cinco cubos de gelo. A fechar, três ou quatro gotas de amargo de Angostura. Acompanhe-se com uns bagos de milho frito (o Peru produz mais de quatro dezenas de diferentes tipos de milho) e não parece haver melhor aperitivo.
Bruno e Vinícius não nos souberam dizer qual o nome do restaurante onde “os gringos” os levaram a comer uma “carne de alpaca deliciosa”, mas quando a experimentámos também aprovámos. Mas os dois brasileiros lembravam-se bem onde tinham terminado a noite. “Ali, estás a ver? Naquela discoteca. Muito legal.” Chama-se Mama Africa, fica no Portal de Panes, viradinha para a Plaza de Armas, e tem como slogan “Reuniendo el mundo”. Passámos por lá duas noites depois mas dos cariocas nem sinal.
Flora e Paulina
Misminay é a antítese de Cusco. Uma aldeia de umas 700 almas perdida naquele que foi o Vale Sagrado dos incas e que nos faz entrar pela primeira vez no avesso do Peru no que aos spots turísticos diz respeito. Chegámos lá de autocarro, depois de estradas ziguezagueantes entre montanhas e de paisagens de encher o olho. O céu está cinzento mas a alegria de quem nos recebe é luminosa. São seis, três homens e três mulheres. Eles tocam flauta, elas dão-nos colares de cantuta (qantu em quíchua), a flor nacional do Peru. Luis Quispe, barrete colorido enfiado até às orelhas, dá-nos as boas-vindas em quíchua. Mercedes Vargas, a nossa guia, traduz: os habitantes de Misminay recebem-nos de coração aberto e esperam que a nossa visita traga mais turistas à comunidade. Flora, sorriso largo e uma longa traça preta penteada para o lado esquerdo, pele escura e bem tisnada pelo sol, fala em castelhano. Agradece-nos termos vindo e entretanto falha-lhe a voz: “Estou emocionada.”
Mullak’as/Misminay é uma comunidade que até há poucos anos vivia exclusivamente da agricultura. Cultivam-se batatas, milho, feijão, favas, criam-se vacas, porcos, ovelhas e galinhas. A vida das famílias que cá moram corria apenas ao sabor das estações até que, em 2007, a Condor Travel entrou em cena e começou, lentamente e de forma sustentada, a pôr a aldeia no mapa.
Quem hoje escreve Misminay no Google dá de caras sobretudo com referências ao programa Wings da agência de viagens peruana, que criou um projecto de “turismo vivencial” na aldeia. À disposição dos turistas, várias opções de actividades, que podem até incluir a pernoita numa das casas da aldeia entretanto reconvertidas para o efeito. Quem preferir ficar apenas umas horas, terá oportunidade de conhecer os rudimentos da agricultura que aqui se pratica ou perceber melhor como tecem as mulheres os bonitos gorros, cachecóis e afins que vendem a quem chega.
Estes programas não são, naturalmente, para todos. Misminay é uma comunidade pobre. Nem todas as casas, feitas de lama e palha, têm casa de banho ou electricidade — apesar de se ver, aqui e ali, uma antena de televisão. Os caminhos são de terra batida, há lama a rodos na época das chuvas e os animais andam à solta. Um dos quartos onde dormem os turistas tem três camas e outras tantas mesinhas de cabeceira, tectos de madeira e tapetes de alpaca no chão de terra. Imaginamos o frio que não fará aqui à noite, a uns 3700 metros de altitude — e o aquecimento, claro, é do mais básico que há. A “sala” onde são servidas as refeições aos turistas é de uma simplicidade que desarma qualquer um. Terra no chão — e uns quantos porquinhos-da-Índia a passearem-se nela, indiferentes à nossa presença — e um enxame de moscas pelo ar. A comida, a do dia-a-dia em Misminay, é também ela simples, mas deliciosa: queijo de ovelha, milho e favas cozidas; sopa de trigo e batata e um salteado de carne com batata amarela (há mais de 4000 variedades do tubérculo no Peru). Só não gostamos das papas de batata desidratada que nos servem de sobremesa.
Enquanto ainda estamos à mesa, Flora toma a palavra para dizer que até há uns “quatro ou cinco anos” as mulheres de Misminay “não trabalhavam” — limitavam-se às tarefas domésticas, é o que quer dizer. “Agora, com este projecto da Condor Travel, que traz cá pessoas de todo o mundo, também ajudamos e apoiamos os nossos esposos. Estamos a trabalhar juntos, homens e mulheres, para podermos melhorar a vida na nossa comunidade.” E agora sem tradução, porque nos parece mais autêntico: “Nuestra vida ha cambiado mucho. Gracias a eso, estamos a ir adelante.”
De facto, desde que começaram as visitas dos turistas tece-se de outra maneira o dia-a-dia dos habitantes de Misminay. Os homens, que habitualmente se dedicavam em exclusivo à agricultura, tornaram-se guias e carregadores da Rota Inca — um caminho pelas montanhas que demora quatro dias a ser percorrido a pé e desemboca em Machu Picchu, muito popular entre turistas com maior preparação física; as mulheres tiveram ajuda para aprender a receber — no fundo, continuam a fazer tudo o que já faziam, desde cozinhar aos trabalhos de artesanato, mas agora com o acrescento de terem de partilhar com quem chega todo o saber que foram acumulando.
É o que faz agora Flora — explica-nos como é que as mulheres de Misminay obtêm as cores para tingir as lãs de alpaca e de ovelha que utilizam para dar forma aos produtos que têm para vender. “As folhas de chilca dão verde, as de capuli outro tom de verde, as de colle dão amarelo…”, enumera. Olhamos para o lado e vemos, bem arrumadinhas no chão, dezenas de peças com assinatura das mulheres de Misminay. A paleta de cores é imensa: vai dos vermelhos aos azuis garridos, mas quem preferir também tem brancos, cinzentos e pretos. Cada peça tem uma etiqueta colada atrás com o nome da artesã — Susana, Flora — e o respectivo preço: cachecóis a 40 soles, gorros a 10. Os tapetes coloridíssimos são naturalmente mais caros: “Demoram uns três meses a fazer”, esclarece Flora.
Não sairemos daqui sem acompanharmos Luis Quispe ao campo. É uma incursão brevíssima, durante a qual nos explica o ciclo de cultivo de alguns produtos — tivéssemos vindo por mais tempo e também poderíamos aprender a manejar a enxada ou a lançar algumas sementes à terra. No entanto, o que mais retemos deste momento é mesmo a cerimónia “de agradecimento à Mãe Terra” em que nos vemos envolvidos.
Dispostas no chão, três conchas marinhas que representam os três mundos basilares da cosmovisão inca: o mundo superior (ou dos deuses, Hanan Pacha), o mundo do meio (ou dos homens, Kay Pacha) e o mundo inferior (ou dos mortos, Uku Pacha). Luis passa-nos entretanto para as mãos três folhas de coca unidas com gordura de lama e com elas iniciaremos o ritual de invocação das montanhas. Em quíchua, um dos homens pronuncia uma lengalenga imperceptível aos nossos ouvidos — só percebemos, repetidamente, a palavra picchu, que já aprendemos que significa montanha. Mercedes explica-nos que o homem, voltando-se e fazendo-nos também voltar para eles, evoca cada um dos montes que temos à volta.
O rito ainda não terminou. Ficamos a saber que, depois de trabalharem a terra, os homens de Misminay bebem sempre cerveja de milho produzida na aldeia. Convidam-nos agora a molharmos um raminho das flores de qantu que nos entregaram à chegada — lembram-se delas? — no líquido amarelado e a aspergirmos a terra, ao mesmo tempo que pedimos um desejo. Estamos, definitivamente, no lado B do Peru.
E ainda não saímos dele, visto que agora, em flashback, recuperamos as primeiras horas da manhã, quando, no miradouro de Rachi, e enquanto esperávamos licença das nuvens para termos vista para o Vale Sagrado, nos cruzámos com Paulina.
Ainda não são 9h, a névoa de que Mercedes falara é mais nevoeiro cerrado e a paisagem incrível que nos prometera só se for por um canudo. Paulina e as outras duas peruanas que habitualmente montam a banca por aqui ainda não alinharam totalmente ponchos, camisolas e outros que tais e já estamos nós a cobiçar as bonecas de trapos — 20 soles, pouco mais de 5 euros. Andam por aqui duas crianças, de uns três ou quatro anos, curiosas e ao mesmo tempo indiferentes à presença dos forasteiros. Perguntamos a Paulina se as podemos fotografar e ela diz logo que sim. Esclarecemos que somos jornalistas, que há a possibilidade de publicarmos as fotos. Hesita uns segundos e depois diz: “Claro, é a única forma de ficarmos famosos.” E com isto solta um sorriso aberto e franco.
Os miúdos, óbvio, sorriem mais quando se vêem nas máquinas fotográficas. E mais ainda quando abrimos a mala e lhes damos um saco de gomas. Adoçámos-lhes o dia e eles o nosso. Yusulipayki, que é como quem diz, obrigado em quíchua.
Com a alma cheia
E agora para algo completamente diferente, de regresso ao lado A do Peru.
Acordámos em Urubamba ainda não eram quatro e meia da manhã, frescos que nem alfaces, muito antes da hora marcada para o despertar. Talvez tenha sido da excitação própria dos grandes acontecimentos: hoje é o dia M — de Machu Picchu. Por mais que não se queira, a visita à cidade perdida dos incas será sempre um dos pontos altos de uma viagem ao Peru e nós não fugimos à regra.
Saímos do hotel às 6h45, debaixo de um céu limpo e com sol — um bom presságio para a nossa visita a Machu Picchu, embora nestas paragens o tempo seja sempre uma incógnita. Mais ainda agora, que estamos na época das chuvas.
Quase não damos pela viagem de autocarro de Urubamba até Ollantaytambo, onde vamos apanhar o comboio que nos levará a Aguas Calientes, espécie de campo-base para a subida a Machu Picchu — vamos demasiado entretidos com a paisagem que se desenrola lá fora: escarpas gigantescas do lado direito e do lado esquerdo, onde corre o rio Urubamba; vacas que pastam descontraídas; e uma curva apertada onde se ergue um altar ao Senhor da Salvação. Com estas e outras, já entrámos em Ollantaytambo, “património cultural da nação”, e apreciamos os terraços destinados à agricultura construídos com dupla função: deter a erosão das montanhas e criar diferentes microclimas, favoráveis a cultivos diversos.
Ollantaytambo, uma promissora cidade de que só tivemos uma visão fugaz (aconselhamos, por isso, que guarde um tempinho para a descobrir), está situada ao quilómetro 68 do trilho ferroviário para Machu Picchu. A esta hora da manhã — ainda não são 8h sequer — está cheia de turistas que aguardam o primeiro comboio, no caso o Expedition (há vários tipos de comboios para Machu Picchu, com preços bastante díspares). À hora marcada, 7h45, a composição azul da Perurail deixa a estação para trás — há-de chegar ao destino uma hora e meia depois.
Por enquanto, vai rodando devagar pelos carris, dando-nos tempo para apreciar a paisagem em redor: o Urubamba, que aqui corre revolto; os campos de milho; as povoações minúsculas. Com janelas no tecto, o comboio oferece sempre uma panorâmica das montanhas em volta, encaixilhadas em pedaços de nuvens que dão um ar poético ao cenário. E quando, ao nosso lado esquerdo, surge a ponte de madeira que marca o início da Rota Inca, contrariamos as expectativas e não apontamos a máquina fotográfica — não nos cansamos de observar estas escarpas gigantescas, imponentes, que desenham no céu recortes incríveis.
E entretanto o comboio pára. Estamos em Aguas Calientes, uma vilazinha de 1000 habitantes que vive à sombra de Machu Picchu — é, aliás, muitas vezes chamada de Machu Picchu Pueblo — e a um passinho do destino mais aguardado. Faltam, porém, ainda 20 minutos de autocarro numa estrada que serpenteia, às vezes até de mais, montanha acima. A adrenalina sobe.
E, já fora do autocarro, subimos também atrás de Mercedes, que nos desafia a uma caminhada de 15 minutos — o sol está bem forte agora, mas a guia promete-nos que o esforço valerá a pena. É verdade: com a língua de fora, chegamos ao topo e temos uma visão completa, desafogada, da cidadela de Machu Picchu, tal e qual como a vemos nas fotos que povoam o nosso imaginário desde sempre. Não falta sequer o nevoeiro por trás da montanha, aquele que torna o quadro ainda mais misterioso.
Por mais que queiramos fugir aos clichés, é impossível perante o que temos à frente. Machu Picchu é magnética, imponente, esmagadora, you name it. O Lonely Planet do Peru escreve que é “o ícone que está acima de todas as expectativas” e que nada pode “atenuar a emoção” de se estar aqui — e não se engana.
Edificada no século XV pelo imperador inca Pachacutec, a cidadela situa-se a 2430m, entre montanhas e descidas íngremes até ao Urubamba. Acredita-se que a construção com enormes pedras de granito tenha demorado 50 anos e que lá terão vivido 500 pessoas. Os conquistadores espanhóis nunca a encontraram. Só em 1911 o americano Hiram Bingham a descobriu, resgatando Machu Picchu da selva e devolvendo ao mundo o que muitos acreditam ser um dos “lugares mais energéticos” do planeta — e as palavras são de Mercedes.
Não sabemos se é realmente assim. Mas, pelo sim, pelo não, entramos na onda e tocamos nas “pedras sagradas”. Não vamos tão longe quanto aquele grupo de pessoas que, lá em cima, vestidas de branco, se entregam a uma cerimónia mística, nem sequer exploramos a cidadela com o vagar que ela merece. Percorremos os lugares mais destacados — o Intihuatana, a Rocha Funerária, o Templo do Condor —, mas precisávamos de mais tempo: são cerca de 200 estruturas, construídas com uma precisão impressionante, as que compõem “este marcante centro religioso, cerimonial, astronómico e agrícola”, como o define a UNESCO, que em 1983 inscreveu Machu Picchu na sua lista de património mundial. Ainda assim, saímos daqui com a alma cheia, capazes de fazer mais um visto na lista de lugares aonde é preciso ir antes de morrer.
“Contar estrelas”
Ao sexto dia de viagem, o corpo dá mostras de sucumbir à altitude. Subimos mais, estamos agora a uns 3800m, de frente para o lago Titicaca. Custa levantar da cama, respirar é uma tarefa que parece muito menos inata, a cabeça ondula, as pernas fraquejam. Talvez seja desta que precisemos de oxigénio — por estas bandas, não há hotel que não o tenha para disponibilizar aos seus hóspedes, que são frequentes os episódios de soroche — o mal de altitude — entre os turistas.
Felizmente temos as mezinhas — chá e folhas de coca para mascar. É o que usam os locais e connosco funciona. Em poucos minutos, vamos recuperando a forma, embora a respiração continue a exigir mais energia. Seja como for, já nos sentimos com forças para explorar o Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo e que o Peru partilha com a Bolívia.
Tinham-nos dito que quando abríssemos a janela do hotel de Puno onde nos alojámos a vista seria arrebatadora. É bonita, de facto, mas não nos encheu as medidas, temos de confessar — já vimos paisagens mais avassaladoras nestes dias de Peru. No entanto, vamos mudando de opinião à medida que a lancha cruza as águas em direcção a Los Uros, um conjunto de ilhas flutuantes que são um marco no turismo da região.
Saíram todas furadas as previsões que apontavam para um frio terrível. O dia acordou radioso, o céu limpíssimo, o sol até mais quente do que seria desejável perante o nosso aprumo, que vai de gorro a cachecol e ainda luvas na mochila. A luz da manhã reflecte-se nas águas calmas do lago, dourando os juncos que por aqui crescem sem freio — e que os uros, um povo que se terá refugiado no Titicaca para fugir ao domínio dos incas, usam e abusam para construir as suas ilhas flutuantes, que já vemos ali ao longe. Por estes dias, informa-nos o guia Edu, serão umas 60 as ilhotas que compõem Los Uros. E depois, divertido, explica que este deve ser o lugar do mundo onde é mais fácil consumar um divórcio. “Se um casal se desentende, só tem que cortar a ilha e um deles vai flutuar para outro lado.”
Apesar do seu lado cinematográfico perfeito — quem resistir às fotos para mostrar aos amigos que atire a primeira pedra —, há quem desconfie que o que se vê em Los Uros não passa de uma encenação de costumes que se foram perdendo ao longo do tempo. O que Edu nos conta é que aqui vivem em permanência umas 4000 pessoas, organizadas em clãs familiares. Lançando mão das raízes do junco, a que chamam totora, os locais constroem os alicerces das ilhas, sob os quais edificam as suas casas, também elas de totora.
Aportamos numa destas ilhas e somos recebidos por Amanda, Rosana e Ronald. Assim que pisamos Pankarita Corazón, não podemos deixar de sentir como os nossos pés se afundam suavemente na totora — e é justamente por este andar balanceado que os uros se denunciam quando vão a Puno. Vivem nesta ilha cinco famílias, mas vemos sobretudo mulheres: os homens estarão a transportar turistas nos barcos de totora, as crianças na escola, que visitaremos daqui a pouco. Por agora, aceitamos o convite de Amanda, 26 anos, para conhecermos a casa que partilha com o marido — são recém-casados, não têm ainda filhos. Quando tiverem, explica, terão que “alargar a casa” — a que têm agora consta apenas de uma divisão com uma cama encostada a um canto e, em frente, um aparelho de rádio e televisão, cujos sinais aqui chegam graças à energia de um painel solar instalado na ilha. De resto, a casa de Amanda é apenas uma paleta de cores que vai do dourado da palha de totora ao verde-fluorescente e ao laranja das saias que tem penduradas em traves de madeira. Também aqui tem espanta-espíritos e tapetes que faz e vende aos turistas.
Não fosse todo o festival turístico em redor destas ilhas — as mais próximas de Puno, a uns escassos sete quilómetros e a uma rápida corrida de barco, pelo que as mais procuradas do lago — e facilmente estaríamos de novo no lado B do Peru. Causa alguma estranheza o modo de vida nestas ilhas flutuantes — desde logo, perguntamo-nos sobre a qualidade da água que aqui é consumida e o que acontece aos dejectos. Edu sorri, dá respostas evasivas e conta que, há 32 anos, quando começou a ser guia, “havia muito mais ilhas, umas 80”, e que os uros “não gostavam de abrir as portas aos turistas”. “Tínhamos que lhes trazer bananas”, recorda.
Os tempos mudaram muito, já se viu. Se há uns anos a vida insular era de facto “mais autêntica”, concede Edu, agora há quem desconfie que isto não passa de uma espécie de parque temático. O guia garante que não: “O que vêem agora que cá estão é o mesmo que se passa quando cá não estão. O que eu acho é que daqui a uns 25, 30 anos, nada disto vai existir, o que é lamentável.”
Mudamos entretanto de ilha e vamos visitar uma escola — há três neste conjunto de ilhas. Entramos na Escuela Adventista Uros e é fácil deixarmo-nos impressionar: numa única sala de aula convivem meninos de idades bem díspares, descalços quase todos, fardas encardidas. A sala tem um cheiro acre — debaixo das mesas, há restos de melancia e outras frutas, papéis amarrotados. Os alunos, que nesta manhã estão a aprender o núcleo e os modificadores do sujeito, recebem-nos com uma canção que repetem em várias línguas: aymara primeiro, a língua-mãe dos uros; quíchua depois; castelhano; inglês; francês; japonês. E quando cantam de novo, desta feita em castelhano — “Amigo dame la mano” — e nos distribuem abraços, temos que fazer um esforço para controlar as lágrimas.
Pode até haver algum lado “disneyficado” em Los Uros, mas Rosana, uma menina roliça de uns 10 anos, e Juan Carlos, que terá para aí uns seis, são crianças reais. Juan Carlos até sabe quem é Cristiano Ronaldo mas, entredentes e a correr, diz-nos que, mais do que jogar à bola, “gosta é de contar estrelas”. Mais do que os nuevos soles, as estrelas, quando nascem, são para todos.
Respiremos
Já estamos a falar com Guadalupe há uns bons 20 minutos — enquanto apreciamos os objectos que vende na loja de artesanato Ylla Qapaq, bem no centro de Puno — quando, por casualidade, lhe perguntamos também o apelido. Ela ri-se, bem-disposta, e responde: “Portugal.” Rimo-nos também e queremos saber de onde vem o nome. Não sabe — diz que o pai, que não é de Puno, mas de um “pueblecito” no Norte do Peru —, acredita que o nome da família vem do tempo dos conquistadores espanhóis mas não pode jurar.
Escolhemos alguns souvenirs — a loja Ylla Qapaq é muito mais cuidada e interessante que as costumeiras no que aos recuerdos diz respeito, procurem-na na Jr. Lima, 394, bem pertinho da Plaza de Armas — e percebemos que Guadalupe tem muita curiosidade sobre a Europa, onde nunca esteve essencialmente “por não ter com quem viajar”. Pergunta-nos pela crise financeira e sabe que ela também tem afectado o Peru que, diz, já se ressente ao nível do influxo de turistas. E olha para o desenvolvimento que o seu país tem conseguido nos últimos anos à luz de uma característica que, reflecte, não encontra nos europeus. “O Peru tem-se desenvolvido porque somos multifacetados. Tu és jornalista, vês-te a ser taxista, por exemplo? O peruano, por causa da fome, é capaz de trabalhar em qualquer coisa. E é isto que nos tem trazido algum progresso”, comenta, enquanto nos embala cuidadosamente uma ocarina, uma bonita flauta de cerâmica que compramos por menos de 15 soles (3,80 euros).
É ainda Guadalupe que nos informa do paro de 48 horas em Puno. Em protesto contra o “aumento de 400%” nas tarifas da água, os habitantes de Puno estão em greve hoje e amanhã e planeiam bloquear todos os acessos da cidade. Daqui a nada, veremos os despojos da acção de luta desta segunda-feira: pneus nas estradas, pedras enormes no meio delas, garrafas partidas. É por causa disto, do paro, que deixamos Puno — uma cidade de uns 100 mil habitantes mas sem grandes atractivos para lá do Titicaca — às três e meia da manhã, antes que se organizem os piquetes de greve.
Chegamos a pensar que vamos terminar a viagem sem honra nem glória — enregelados num autocarro, de madrugada, a fazer horas para a visita às torres fúnebres de Sillustani. Talvez pelo desconforto do despertar precoce, mostramos alguma resistência à valia desta paragem. Avistamos ao longe as chulpas cilíndricas usadas pelos colla (um povo pré-inca) para sepultar os seus nobres e quando percebemos que a subida ainda vai demorar uns bons 20 minutos ampliamos as reservas. Mas subimos, pois subimos — e alcançámos o ponto mais alto da viagem. Literalmente: estamos a 3890m, nunca estivemos tão perto das nuvens.
Mais do que as chulpas, é o quadro que temos à volta que nos prende. Que nos perdoe o Titicaca, mas este lago Umayo que olhamos agora, na placidez das primeiríssimas horas da manhã (praticamente sem outros turistas), dá-lhe 10 a zero. Talvez seja pelo inesperado, mas tudo isto nos parece bom de mais para ser verdade: a ilhota que parece ter sido cortada à faca, os fiapos de nuvens branquinhas a fazer resplandecer o céu azulíssimo, as montanhas a emoldurar o conjunto.
Não somos propriamente as pessoas mais crédulas do planeta, mas aqui sentimos que este mundo não é nosso. Pachamama, a Mãe Terra adorada pelas comunidades indígenas dos Andes, fez um trabalho notável.
Lembram-se de Eliana? Respiremos.
A Fugas viajou a convite da Agência Abreu e da LAN
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Como ir
A Fugas viajou a convite da Agência Abreu, que de 2 de Janeiro até 30 de Abril do próximo ano comercializa o pacote “Peru Fascinante”. Inclui visitas a Lima, Cusco, Písac, Ollantaytambo, Machu Picchu, Puno e lago Titicaca (ilha Los Uros). Preços por pessoa, em quarto duplo: 2786€ em hotéis de turística superior; 3005€ em hotéis de primeira; 3307€ em hotéis de primeira superior. Inclui avião (partidas diárias de Madrid), nove noites de alojamento, três refeições, visitas com guia local, taxas de aeroporto, segurança e combustível e seguro de viagem.
Quem preferir viajar por sua conta e risco, tem à disposição voos directos de Madrid para Lima. A LAN tem voos directos todos os dias, com preços a partir de 595€, ida e volta, mais taxas.
Se viajar de forma independente deve ter em atenção, por exemplo, que as visitas a Machu Picchu estão limitadas a 2000 pessoas por dia e que o comboio de Cusco até lá pode custar uns 150 dólares (108 euros). Planeie a viagem com o máximo de antecedência possível.
Quando ir
A época baixa no Peru vai de Dezembro a Fevereiro, que coincide com a estação das chuvas. Pode não ser boa ideia, sobretudo para os que planeiam cumprir a Rota Inca — cujo trilho está, aliás, encerrado em Fevereiro. Nas montanhas andinas, a época alta vai de Junho a Agosto, a estação seca. Claro que nesta altura as enchentes são mais assinaláveis — os meses menos concorridos no Peru são Setembro, Outubro e Novembro e Março, Abril e Maio.
O que fazer
Uma viagem da Europa para o Peru implicará quase sempre uma escala em Lima, a capital do país. E impõem-se pelo menos uns dois ou três dias de visita à cidade de 8,5 milhões de habitantes. Se sair de Portugal com um roteiro organizado, arrisca-se a ter pouco tempo para descobrir Lima — que, apesar de muitas vezes ficar à margem dos roteiros dos turistas que chegam, tem muitos pontos de atracção. Desde logo, a comida. Lima quer afirmar-se como uma das cidades que contam a nível mundial quando se fala de gastronomia: estão aqui os restaurantes que mais dão cartas no que à variadíssima gastronomia peruana diz respeito — e há muito mais para além do afamado ceviche para descobrir.
Museus também os há com fartura, mas se tiver pouco tempo, como foi o nosso caso, sugerimos o Museu Larco, que reúne “apenas” a maior colecção privada do mundo de arte pré-colombiana.
O centro histórico de Lima, com a Plaza de Armas à cabeça, merece ser apreciado sem pressas. Aconselha-se a visita à catedral e ao mosteiro de São Francisco.
Partindo do princípio que passará pelo Vale Sagrado, a sua viagem não ficará completa sem uma paragem nas salinas de Maras — cerca de 3600 poças que na época seca, graças à evaporação da água e à sua transformação em sal, se cobrem de branco — e ao sítio arqueológico de Moray, um impressionante conjunto de anfiteatros (três) que remonta ao tempo dos incas e faz lembrar, aqui e ali, os socalcos do Douro. Nestes terraços circulares que os incas usavam para fazer experimentação agrícola — os vários microclimas que se criavam permitiam diferentes culturas — respira-se uma tranquilidade sem par. É claro que a imponência de Machu Picchu é inigualável — e uma coisa não invalida a outra, naturalmente — mas Moray tem a vantagem de ser menos procurado pelos turistas. O nosso conselho é que o visite com tempo — para descer e subir de novo os anfiteatros e, se for dado a essas coisas, para meditar com vista para as montanhas.