Fugas - Viagens

Pilar Olivares/Reuters

O Peru do direito e do avesso

Por Sandra Silva Costa

É um país que se tricota com vários matizes. Para lá da clivagem entre ricos e pobres, a diversidade geográfica, linguística e cultural é de tal ordem que às vezes duvidamos estar dentro da mesma fronteira. O Peru é Cusco e Machu Picchu, capitais do turismo, mas também é Misminay e Pankarita Corazón, onde os nuevos soles não nasceram para todos.

Encontramo-la sozinha, sentada num banco virado para a catedral. Tem um livro na mão — Seis sombreros para pensar — e um olhar diferente do nosso, mais desassombrado. Pudera: Eliana Serrano, 18 anos, nasceu aqui e por mais que ache a sua cidade “preciosa” conhece-a de cor e salteado. Quase poderia fechar os olhos e descrever-nos o que se passa aqui, agora, na Plaza de Armas de Cusco, 14h15 de uma quinta-feira de Novembro.

Aninhada entre montanhas, a cidade inteira parece convergir para aqui, para este lugar que foi outrora o coração do império inca. Em pano de fundo, a música tradicional andina que vem sabe-se lá de onde é cortada pelo bater compassado dos calceteiros que reparam a rua defronte da catedral. Engraxadores de sapatos esperam por pés que passem sem pressas; mulheres em trajes tradicionais, bem garridos, deixam-se fotografar a troco de um nuevo sol, a moeda peruana; um rapaz descalço vende bolachas caseiras; crianças de escola (do Colégio Santo Tomás) correm atrás dos pombos; turistas folheiam guias em várias línguas; casais de namorados trocam mimos discretos; vendedores de ocasião oferecem capas para a chuva, que o céu ameaça desabar a qualquer momento.

Eliana observa a catedral, que domina a praça, embora os mais distraídos a possam confundir com a Igreja da Companhia de Jesus, no outro lado do quadrado em redor do qual sobressaem as varandas de madeira ornamentadas e os arcos da era colonial. Aos nossos olhos, é um presépio, esta Plaza de Armas, mas Eliana, dizíamos, olha para Cusco — e para o Peru em geral — como quem olha para o outro lado do espelho.

“Tudo isto me encanta. A cidade é linda, adoro o clima desta região, mas depois há um país que não sabe muito bem para onde vai.” Eliana estuda contabilidade na Universidade Austral de Cusco e diz que o faz também “para poder ajudar” o Peru. “Os políticos não sabem muito bem o que podem fazer pelo país”, avalia. Mandasse ela e as prioridades seriam estas: “Primeiro, é essencial ter uma boa economia e um sistema de ensino desenvolvido; depois, é preciso, e rapidamente, ajudar os muitos pobres que temos no nosso país.”

Sacudidas estas pedras do sapato, entende Eliana, o Peru é o melhor país do mundo para se viver. Nunca passou a fronteira, tão-pouco foi a Lima, a capital — as suas viagens limitaram-se a “Urubamba, Puno, Pisac, Arequipa”. “Adorava conhecer Itália” mas sabe que, pelo menos para já, é “impossível”. Contenta-se, pois, com o que está mais à mão: sempre que pode gosta de ir “ao campo, procurar vento e liberdade, respirar”.

Respirar — é mesmo disso que precisamos agora. Não que a conversa de Eliana nos tire o fôlego, é mais a nossa falta de hábito a um ar tão rarefeito. Temos apenas um dia de Peru no currículo e ainda não estamos familiarizados aos 3400 metros de altitude de Cusco. Não vamos fugir para o campo, como faz Eliana, deitamo-nos antes a deambular ao acaso pelas ruas de Cusco, pé ante pé, bem devagar. Sem bússola que nos oriente, penetramos no dédalo de ruas que saem da Plaza de Armas e em menos de nada estamos na Plaza San Francisco, um nicho mais recatado de cidade. Recheada de árvores nativas — queuña, chacha, molle — que lhe dão um ar muito lá de casa, aqui também se pode sentir o pulso à cidade, embora a um ritmo mais descontraído, pelo que este pode muito bem ser um spot alternativo à vibrante praça onde tudo acontece em Cusco.

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