“É assim que gosto de viajar; é nessas alturas que me acontecem coisas interessantes” — e foi isso que lhe aconteceu em Cabo Verde. Decidiu passar essa experiência ao cinema, mas o que está no fi lme “é apenas um vigésimo” de tudo o que viveu no arquipélago africano. Nessa viagem de descoberta, e também de reencontro consigo próprio após momentos de mudança na sua vida familiar, Ribeiro assumiu inscrever nos seus desenhos (e depois também no fi lme) a sua própria imagem estilizada a negro e a traços grossos sobre os cenários coloridos de Cabo Verde. Retomou assim, de certo modo, a figura do protagonista de A Suspeita.
Quando lhe perguntámos se essa representação autobiográfica foi uma decisão consciente, o realizador admite que sim. “Comecei a acreditar nisso quando a minha fi lha, depois de ver A Suspeita pela primeira vez, me disse: ‘Pai, tu és aquele!’. Aí percebi que havia qualquer coisa que me identifi cava, e assumi isso na viagem”. Afi nal, tratava-se de falar de si próprio, usando a sua fi sionomia e hábitos quotidianos: a barbicha, a mochila, o caderno de desenhos… “Se quero falar de mim, não vou pôr-me a inventar.”
Viagem a Vila do Conde
O filme que resultou da experiência de Cabo Verde haveria de dar origem a um novo projecto de viagem, mas, desta vez, mais perto de casa. Respondendo a um desafi o do Curtas Vila do Conde, José Miguel Ribeiro está presentemente a terminar uma curta-metragem, Cadernos de Viagem, sobre uma visita à pequena cidade da foz do Rio Ave. “O filme segue o mesmo conceito do de Cabo Verde, mas retrata apenas uma semana de viagem por Vila do Conde”, diz o realizador. Cadernos de Viagem ficará pronto no início do próximo ano, e deverá ter estreia nacional na próxima edição do festival, em Julho.
Este trabalho foi já produzido no seu pequeno espaço no mercado de Montemor-o-Novo, onde a sua filmografi a aportou, há uma década, com As Coisas Lá de Casa (2003), uma série televisiva de 26 episódios de 2’30’’ que trouxe de Lisboa. Foi com este projecto, realizado com uma equipa de animadores da capital e outros já de Montemor, que Ribeiro se começou a “instalar suavemente” na sua nova terra. “Fui conhecendo uma pessoa aqui, outra ali… Levei muito tempo a tornar-me um montemorense.”
Entre as pessoas que entretanto conheceu na sua nova terra alentejana está o coreógrafo Rui Horta, que aí se tinha instalado, um ano antes de si, com o projecto O Espaço no Tempo, no Convento da Saudação. “Só o conheci depois de ter chegado, a ele e a toda a gente que trabalha nas ofi cinas do convento”, diz Ribeiro — que no primeiro fim-de-semana de Novembro sediou no convento parte das iniciativas da Festa Mundial da Animação.
O realizador foi descobrindo, ao longo destes anos, que também ele estava a acrescentar um novo capítulo a “uma cidade onde a cultura não é estranha às pessoas”. Ver uma peça de teatro, um espectáculo de dança, um filme de animação, uma exposição de artes, é algo que faz parte do quotidiano dos montemorenses. “É uma terra de dez mil habitantes, não é muita gente, mas é como diz o Rui Horta: ‘Se, num espectáculo de dança numa sala de 50 lugares, tivermos vinte pessoas presentes, isso significa quase o Pavilhão Atlântico cheio em Lisboa”, nota Ribeiro.