No Recife, uma cidade luminosa, onde os rios Beberibe e Capibaribe “se juntam para formar o Oceano Atlântico” — esta é mais uma das máximas que denunciam o fervor dos recifenses pela sua cidade. Ou, fazendo da cidade um ponto de partida, Caruaru, já na zona do Agreste, para não falar de uma viagem mais longa (uns 300 quilómetros) para se chegar a essa zona das “solidões vastas e assustadoras” que é o sertão do Brasil. O lugar de onde emergiu uma cultura popular antiga, feita de cruzamentos entre elementos coloniais, negros e índios, que resultou no maracatu ou no forró que Luís Gonzaga transformaria num modo de expressão da identidade nordestina.
Como Ouro Preto, em Minas Gerais, Olinda, a pequena cidade na colina, com as suas 21 igrejas e um casario barroco envolvido pela vegetação dos trópicos onde se destacam os coqueiros, é uma entidade quase irreal. A prova cristalizada de um passado glorioso, quando a capitania do Pernambuco foi a capital mundial da produção de açúcar, quando os senhores dos engenhos instalados no interior ali construíam as suas mansões e financiavam as igrejas.
Como a do mosteiro de São Bento, que sendo de traça barroca (a fachada é de 1761), não deixa de apresentar originalidades muito especiais. À falta de granito, a construção foi feita com blocos de rocha dos recifes — as conchas abundam na sua superfície. Na ausência de castanheiros ou de carvalhos, as imponentes obras de carpintaria foram feitas com jacarandá.
Investir um dia em Olinda não pode, por isso, passar sem uma revisitação da história. De Pernambuco, do Brasil, mas também de Portugal. Foi naquela cidade que se reflectiu a síntese da Casa Grande e da Senzala dos engenhos de açúcar, o processo que, segundo o grande autor Gilberto Freire (ele próprio um pernambucano) impulsionou o luso-tropicalismo e a miscigenação que forneceria abundância de almas para colonizar o país-continente.
A conquista holandesa do Nordeste brasileiro, em 1630, remeteria Olinda para um esquecimento forçado. A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais preferiu instalar o seu quartel abaixo de Olinda, na zona da foz do Capibaribe, e quando os colonos portugueses expulsam os invasores, em 1654, Olinda é uma cidade devastada e empobrecida.
Em 1689, Varela Barredo escreveria que Olinda “ficou arruinada de todo”, na qual não havia mais do que “umas memórias dos arruinados edifícios que ainda hoje estão mostrando o que foram”. Com os senhores dos engenhos a rumarem para as suas Casas Grandes nas zonas do Agreste ou do Sertão, Olinda tornou-se um refúgio para os brancos pobres, para os “pardos” ou para os escravos libertos. Foram eles (e a sua pobreza) que lhes conservaram as casas e cuidaram das igrejas. São eles os responsáveis pelo facto de essa jóia da arquitectura colonial portuguesa ser considerada Património Mundial da UNESCO.
Hoje, Olinda está recuperada e brilhante. Uma casa razoável na sua zona histórica chega a custar 600 mil euros. Um roteiro que comece no mosteiro de São Bento, suba ao convento de São Francisco, passe pela catedral, espreite a loja do frevo que lhe fica no bordo, observe a belíssima linha da costa até à Boa Viagem no miradouro em frente, desça a íngreme Ladeira da Misericórdia e passe um resto de tarde nos bares do casario histórico, é obrigatório. Rezam as crónicas que Duarte Coelho, primeiro capitão donatário de Pernambuco e fundador de Olinda, na primeira metade do século XVI, terá subido os seus morros, avistado a paisagem e dito: “Ó linda vista para se fazer uma cidade”. É lenda, mas se tiver um fundo de verdade não espanta ninguém.
Recife cosmopolita
Mais jovem, logo mais irreverente, Recife é feita de outro extracto. Como cidade que nasceu em torno de um porto de onde saíam o açúcar e o pau-brasil e entravam europeus, roupas, vinho e ideias, a sua feição cosmopolita é inegável. Nos bares, nos restaurantes, nas ruas, na música, onde o mangue beat articula a cultura popular (o forró e outros ritmos sertanejos) simbolizada pelos mangues, onde vivem os pobres, com o hard rock. Onde o artesanato ou a lírica popular testemunham uma evidente devoção ao banditismo social do interior do estado protagonizado por heróis populares e românticos como Lampião e Maria Bonita — o “banditismo por uma questão de classe”, que Chico Science, a grande figura do mangue beat, cantava.
O melhor método para se divagar pela cidade é começar no Marco Zero, de onde todas as distâncias de Pernambuco são calculadas, onde o Carnaval se estreia, onde a cosmovisão dos recifenses tem a sua origem. A partir dessa grande bola inscrita no chão, como um alvo, a cidade antiga, está-se ao alcance dos bairros centrais do Recife, São José, Santo António e Boa Vista. Nas imediações, enquanto o Cais do Sertão não abrir (talvez lá para o final de 2014 esteja completo), pode-se voltar as costas à urbe, olhar o mar e ver sobre o recife em frente a série de esculturas de Francisco Brennand a celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Há quem goste.
Nos dias que correm, caminhar livremente pelo coração do Recife não é a aventura de há 20 anos. As ruas da cidade velha acusam ainda anos de incúria e de esquecimento, mas estão hoje mais limpas, e a exposição crua da pobreza e marginalidade urbana deixou de se sentir. Há anos que as taxas de violência regridem no Recife e o que outrora foi uma das cidades mais perigosas do Brasil apresenta hoje índices mais baixos em crimes como roubo ou homicídio. Mas estamos a falar em valores médios do Brasil. O que quer dizer que, se hoje é possível cruzar o centro do Recife, durante o dia, com uma confortável margem de conforto e segurança, isso não quer dizer que se recomende a despreocupação.
No bairro do Recife, a curta distância do Marco Zero, é incontornável o cruzamento da pequena rua do Bom Jesus. Pela feição arquitectónica, sem dúvida, mas mais pelos vestígios que aí se encontram da sinagoga de Kahel Zur Israel, fundada em 1642, época da colonização holandesa, e logo arrasada pela intolerância religiosa dos colonos portugueses. Na ausência de um museu de cera, procure-se a Embaixada dos Bonecos Gigantes, uma galeria de gigantones da tradição dos grupos Zé Pereira, que são um dos ícones do Carnaval de Olinda. Encontrará ali em tamanho XXL o Papa Francisco, Che Guevara, Dilma Rousseff, Rita Lee ou Neymar. E sim, claro que Lampião, o famoso bandido do cangaço do princípio do século, também tem lá a sua figura.
Do bairro do Recife para os vizinhos a caminhada faz-se por pontes. Recife orgulha-se de ter a mais antiga ponte das Américas (e não, não é mais uma exibição de excesso de amor próprio), o que é fácil de perceber. O grande centro do Recife são afinal três ilhas ligadas por 39 pontes. Nos bairros de São José, Santo António e Boa Vista pode-se encontrar nas igrejas ou no que resta do casario setecentista a expressão do tempo em que Olinda é esquecida e os senhores da cidade se instalam mais abaixo. Não se espere ver aqui a grandiosidade da arte sacra da velha cidade vizinha. O que aqui vale a pena procurar é o torvelinho (o “vucuvucu”) das ruas populares, como o da Rua Direita nas horas de ponta. Ou o colorido do mercado de São José, onde se compra carne ou tambores, pássaros vivos ou sementes e frutas caleidoscópicas.
É bom caminhar pelo centro do Recife e ainda mais nas margens dos seus rios, onde a brisa permanente do mar tempera o calor húmido. Como compete a uma cidade brasileira, os vendedores de água de coco abundam. E dificilmente haverá algo mais animador para se andar do que uma água de coco gelada. Entre lojas que variam do padrão chinês à singularidade do artesanato ou da indústria nordestinas, vão-se encontrando pequenas jóias da arquitectura ou da cultura local. Uma visita ao Real Gabinete Português de Leitura, um edifício do princípio do século XX onde estão catalogados 80 mil volumes, alguns dos quais remontam aos séculos XVII e XVIII, é obrigatória. Vale a pena passar pela zona do Palácio do Governo, no Campo das Princesas e reparar no magnífico baobá — uma árvore africana rara — que se encontra ao lado.
Saindo do centro, entra-se na esfera das zonas residenciais indiferenciadas. Na Boa Viagem, o mar azul-turquesa dos dias mais límpidos acompanha-se ao longo de uma calçada de quilómetros, onde há sombras de coqueiros e o conforto de esplanadas. No morro da Conceição, um bairro popular, há uma ampla vista sobre a cidade. Na zona do Pina háshoppings modernos. Na Brasília Teimosa (uma favela contemporânea da fundação de Brasília, em 1960, que “teimou” em resistir a todas as ordens de demolição das autoridades) há uma belíssima praia popular, que aos fins-de-semana se enche de moradores do bairro ou da vizinha zona do Pina. Uma bebida refrescante no primeiro andar do célebre bar Biruta permite-nos perceber a relação descontraída, natural, que os recifenses têm com a areia e o mar.
Conhecer Recife e Olinda é por isso uma oportunidade de conhecer uma fatia diferente e muito especial do Brasil. Com 1,5 milhões de habitantes, Recife, a mais rica cidade do Norte e do Nordeste do Brasil, é um mosaico de experiências capaz de satisfazer os interesses dos que gostam de história, de vida urbana, de arte ou de culturas vincadas como a que cruza o Sertão com o mundo moderno. Como todas as cidades brasileiras, não é capaz de se catalogar sob a égide de um denominador comum. Recife não é parecida com Natal nem com Belém nem com Salvador nem com o Rio — e ainda menos com São Paulo. É uma cidade com os seus pergaminhos, virtudes e defeitos.
Ouvir os seus habitantes dizer que a sua cidade é a Veneza da América, o lugar onde se fez a primeira ponte do continente ou onde os franciscanos se instalaram pela primeira vez não deve ser, por isso, visto como presunção. É apenas um instrumento para afirmarem que gostam de si próprios, do maracatu e do mangue beat, dos canais e do Campo das Princesas, da Rua da Aurora e do Pina, dos ensinamentos do banditismo social e do frevo, do Carnaval que deu origem ao Galo da Madrugada, um bloco que reúne mais de 1,5 milhões de pessoas, do tradicional Luís Gonzaga, do ousado Chico Science ou do moderno Lenine, do humanista Joaquim Nabuco ou do tolerante Gilberto Freire. Eles divertem-se a apregoar a excelência da sua cidade e quem for capaz de a entender e apreciar pode até pensar que eles poderiam usar um tom mais sério na sua apologia.