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O realismo mágico de Bogotá

Por Andreia Marques Pereira

Não é uma beleza convencional, tão-pouco é o perigo que convencionalmente se lhe associa. Na verdade, poder-se-ia dizer, parafraseando os slogans turísticos do país, que Bogotá foi de um realismo perigoso e agora o mágico é que se possa querer ficar. Palpitante, a capital colombiana revela-se cosmopolita sem virar as costas à sua história e tradições. E esse é o seu segredo.

É fácil esquecer que em Bogotá estamos nos Andes. Afinal, o planalto onde a capital colombiana se instalou é tão vasto que até lhe chamam “savana de Bogotá” e vai, claro, muito para além dos limites da cidade, que é oficialmente “distrito capital”, Bogotá D.C., portanto. Estamos a 2640 metros de altitude (os bogotanos gostam de dizer que estão “2600 metros mais perto das estrelas”) sem termos noção de tal e os picos montanhosos que nos acompanham não parecem assim muito altos — os cerros Monserrate e de Guadalupe levam-nos acima dos três mil metros de altitude, mas vistos de Bogotá não são impressionantes.

Ao de Monserrate (3215 metros) chega-se apenas de funicular, depois de uma curta viagem que nos eleva sobre a cidade ou nos empareda em túneis de pedra — ou melhor, não “apenas”: os mais desportistas sobem-no como parte da rotina de exercício físico e não sentem falta de ar lá em cima, onde ainda têm energia para estiramentos e outros que tais à sombra do Santuário del Señor Caído (1640). Nós tememos a reacção à altitude e é preocupação vã; se tomamos chá de coca é mais pela curiosidade do que pela necessidade física. Na verdade, até só o tomamos após explorar o monte de Monserrate, miradouro privilegiado — de um lado para as montanhas verdes, desertas, que prolongam a cordilheira oriental dos Andes; do outro, para a cidade, vista daqui uma tapeçaria onde se distinguem arranha-céus e, se observarmos bem, até a Plaza Bolívar, bem perto da encosta, antes se transformar num mar pardo e indistinto até desaparecer entre a neblina (ou smog?).

É já quando estamos a regressar ao funicular, depois da visão etérea de uma cidade que pode ser caótica, que paramos no quiosque onde o chá de coca tem um rival à altura, o típico canelazo, bebido nos Andes desde tempos imemoriais, feito de aguardente, açúcar ou panela (sumo de cana de açúcar coalhado) e água de canela — bebida imprescindível nos dias mais frios, quando os bogotanos até a levam no carro para se aquecerem.

Dias como estes que passamos na capital colombiana — frio à maneira bogotana são dias que podem chegar aos 20 graus e noites com 10, 12 (nós vamos preparados para frio à maneira portuguesa). Não é o típico clima de uma cidade num país tropical, mas Bogotá não é a típica cidade de um país tropical: a altitude não perdoa e Bogotá é a terceira capital mais alta da América do Sul, só ultrapassada por Lima e Quito. Algo que os habitantes da cidade contornam bem, sabendo sempre que uma viagem de duas horas para sul significa encontrar temperaturas de 35 graus, “perfeito para fins-de-semana”, diz-nos Alessandra, a nossa guia. Na cidade, avisa, o melhor é sair todos os dias preparados para as quatro estações, guarda-chuva, casaco e algo enrolado ao pescoço.

Achamos exagerado, mas passámos poucos dias em Bogotá e tivemos sorte, tempo primaveril, com dias cálidos e noites frescas. Perfeitos para caminhar — algo que até há poucos anos seria visto como algo temerário. Mas a Colômbia está a mudar e Bogotá é uma das faces dessa mudança que o ex-Presidente Álvaro Uribe (está na boca de todos) pôs em marcha no país. Ainda se vê muita polícia na rua, metralhadoras ao peito, mas não há tensão, nem dos passeantes nem dos polícias, que não dizem que não a fotografias. Claro que não caminhámos por toda a cidade — fizemo-lo em bairros centrais —, mas o que retemos é que Bogotá merece a mesma preocupação que qualquer grande metrópole: é necessária alguma atenção e há zonas a evitar.

Esta é uma grande conquista para uma cidade durante anos assolada por raptos e ataques de movimentos de guerrilha. O poder político dos últimos anos empenhou-se na segurança, transformando-a numa urbe mais amável para todos, pobres e ricos — a revolução aqui passou pela melhoria de infra-estruturas (o sistema de autocarros rápidos Transmilénio, por exemplo, significou uma grande melhoria da qualidade de vida das populações mais pobres), pela criação de espaços públicos (de bibliotecas a jardins) e pela promoção de um estilo de vida mais “verde” (300 quilómetros de ciclovias e um domingo só para bicicletas nas principais artérias) — isto numa cidade que conta com um recorde de 107 metros quadrados de área verde por habitante (e são oito milhões), em vários parques, incluindo um nacional.

E depois há aquilo que se transformou numa espécie de apodo de Bogotá que o orgulho leva a repetir várias vezes: Bogotá é a Atenas sul-americana. Os números para atestá-lo são os 58 museus, os 45 teatros, as 62 galerias — e nestas últimas, pelo menos, cremos que o número oficial pode estar subvalorizado. Isto deixa de parte os eventos anuais ou bianuais que transformam Bogotá numa autêntica capital cultural mundial, como a Feira Internacional do Livro, a terceira mais importante da América Latina, que teve Portugal como país-convidado em 2013 (este ano dará essa honra ao Peru, entre 29 de Abril e 12 de Maio); e o Festival Ibero-americano de Teatro que acontece de dois em dois anos (termina amanhã), onde passam dezenas de companhias teatrais de todo o mundo, da Coreia do Sul à Noruega. E deixa de fora toda a cultura informal que fervilha por detrás de portas ou está na rua, como o teatro de rua ou o grafitti.

Os grafittis são uma constante, em edifícios ou muros de viadutos nas principais avenidas da cidade, lançando mensagens que vão da política ao meio ambiente, da violência doméstica ao feminismo, ou são “apenas” demonstrações de virtuosismo, mais ou menos lúdico. Houve uma mini-revolução nesta área: começou em 2011, com a morte, às mãos da polícia, de Diego Felipe Becerra, quando pintava num viaduto — a partir daí o governo da cidade conduziu uma política mais tolerante e o recentemente destituído presidente da câmara de Bogotá reconheceu o grafitti como uma forma de expressão artística e cultural e delimitou as superfícies onde poderia ser praticado, tornando Bogotá uma meca mundial (entretanto, os limites esbateram-se desde que Justin Bieber, após um concerto, decidiu pintar “fora das margens” com escolta policial — uma maratona graffitera de 24 horas no mesmo local fez ouvir a reivindicação: “Se o Justin Bieber pode, por que não nós?”).

Daqui houve Bogotá

Andrés Victoria, bogotano nado, criado e entusiasta, dá-nos na primeira noite as coordenadas para abordar a cidade. “No centro, descobres a história, o resto é cultura citadina.” Não queremos contrariar Andrés, até porque, em traços largos, essa divisão até faz sentido. Contudo, nada é linear e história e cultura citadina mesclam-se constantemente sem qualquer respeito por fronteiras geográficas impostas pelo desenvolvimento da cidade fundada em 1538 por um aventureiro espanhol (andaluz, mais precisamente — daí o nome que deu a esta parte do Novo Mundo que viria a ser um vice-reino, Nova Granada) de seu nome Gonzalo Jiménez de Quesada.

É assim que num sábado à tarde podemos observar, à medida que percorremos avenidas que ligam o centro histórico ao aeroporto, os grafitters em acção. Dezenas deles, em grupos ou solitários, a desenhar figuras nas paredes de betão de túneis e viadutos — um carro de polícia está parado junto a um desses grupos, “a pedir identificações”, dizem-nos, algo “normal”. Do mesmo modo, é com os olhos postos nas paredes de edifícios que saímos na Praça da Concórdia para caminhar até ao Chorro de Quevedo, um percurso pelo que foi a pré-história e a história primeira desta cidade: a Concórdia era a zona de férias do zipa (cacique) muísca, o povo que ocupava a região, quando Quesada chegou e instalou a sua primeira guarnição no Chorro de Quevedo — foi daqui que houve Santa Fé, que foi de Bogotá, e estabilizou em Bogotá D.C..

Se muitos edifícios estão decadentes, ou são absolutamente anódinos, neste canto da zona histórica de Bogotá com vista para a baixa de arranha-céus, a vitalidade está em alta e isso também se vê colado nas suas paredes, algumas quase em ruínas. Desde a simples indicação para o “Teatro de Sueños”, pintado num muro, ao manifesto que transforma a metralhadora em máquina fotográfica; da afirmação da cultura indígena nas paredes da Plazarte — um paradigma do eclectismo bogotano que também acontece nas margens: é mercado, centro cultural e artístico — à defesa dos direitos das mulheres; da causa ecológica à igualdade plasmada na parede do Colégio La Candelária. E ao lado da casa mais vistosa da praça, traça republicana, roxa e branca, uma síntese da Colômbia, com máscaras pré-colombianas e vultos a pontapear bolas, ondas azuis, autocarro diante edifícios coloniais…

É a Calle del Embudo que tomamos, estreita, estreitíssima, pedras desirmanadas, arquitectura a condizer: temos casas coloniais e outras em tijolo, umas imaculadamente pintadas em cores explosivas (logo à entrada: amarelo torrado com lista roxa), outras com grafittis. A multidão circula por vezes com dificuldade nesta rua onde há hotéis-galeria, cafés-galeria, hostels, lojas de artesanato, cabeleireiros lado a lado com casas abandonadas. Deixamos para o final a sua imagem de marca — as chicherías. “Sí, hay chicha” ou “Hoy chicha” são avisos que se repetem nas fachadas, aludindo à bebida tradicional indígena à base de milho fermentado, proibida pelos espanhóis mas tão resiliente que hoje é muito popular entre estudantes, mesmo que seja nas suas versões “coloridas”, ou seja, light (com sabor a uvas, morangos, cerejas).

E aqui estamos em território universitário — há várias universidades na zona (mas há dezenas, atrevemo-nos a dizer, instituições de ensino superior na cidade). O ambiente boémio concentra-se no Chorro de Quevedo: sábado de manhã e a praceta coberta de tijoleira em torno de um fontanário seco (o chorro) é uma concentração de várias tribos urbanas, sentadas no chão, em degraus, em bancos. No ar, há música e odor a marijuana como que a compor o perfeito cenário boémio. À volta, e nas ruas que daqui saem, casas coloniais, alguns restaurantes, bares, lojas de artesanato — e uma parede erguida como uma fachada de uma casa de grandes janelas e portas traz-nos à memória o novo slogan do turismo colombiano: “Colômbia, realismo mágico”. A modesta igreja bege e cor de ferrugem num dos lados da praça é um testemunho, recriado (como a praça que foi reconstruída, nos anos de 1960), do passado: da igreja onde se rezou a primeira missa bogotana — essa era a Capilla del Humilladero, esta, a cópia, é a Ermita de San Miguel del Príncipe.

El dorado

Daqui deste alto, é sempre a descer até ao coração de Bogotá. Estamos na Candelária, estamos no início de tudo. Casas baixas, coloniais ou republicanas (o estilo afrancesado que chegou na segunda metade do século XIX), multicoloridas ou imaculadamente brancas ladeiam as ruas estreitas. Quanto mais se desce, mais os edifícios crescem: para cima e são republicanos (alguns incluindo coloridos vitrais), ou igrejas, conventos; para o lado, e são as casonas coloniais, altas o suficiente para ter uma varanda comprida no primeiro andar — ou então para se mostrarem quase impenetráveis na fachada, acessíveis por portones (grandes portas de madeira), para depois revelarem toda a harmonia nos pátios interiores, esses sim todos rodeados de varandas debaixo de arcadas — qualquer semelhança com a arquitectura andaluza não é pura coincidência, já sabemos.

Um desses edifícios é hoje o Museu Botero — mas é também um exemplo de como as aparências enganam: é em estilo colonial mas pouco centenário, foi construído em 1955, réplica do paço episcopal setecentista que aí existia. Entretanto, já passamos a igreja da Candelária, dois tons de amarelo, o Museu de Bogotá (revisita a história de Nova Granada) e em frente temos o contemporâneo Centro Cultural Gabriel García Márquez, que tem direito a stencils nos edifícios circundantes — “Celebrando a Gabo”, lê-se repetidamente — a assinalarem o aniversário do Prémio Nobel da Literatura colombiano (falecido a 17 de Abril, poucos dias depois de passarmos pelo seu país).

O Museu Botero, portanto, uma das casonas abertas ao público — e para o público: a entrada é gratuita (não é caso único em Bogotá). Uma mão gigante do artista colombiano (quem passeou pela madrilena La Castellana já viu uma semelhante) recebe-nos e dá o mote para o que veremos nas outras salas — Botero tem predilecção por figuras rotundas, as “gordas”. Pintura e escultura, num total de 123 obras (o segundo maior acervo do artista), de onde se destaca, por exemplo, a sua Mona Lisa, mas que abrangem várias das temáticas que conformam o boterismo, como as cenas da vida quotidiana, naturezas mortas e personagens históricas. Contudo, este museu não se resume ao trabalho do artista nascido em Medellín, dá espaço a uma das suas paixões, o coleccionismo. Por isso, não se surpreenda se encontrar Renoir e Pissarro, Toulouse-Lautrec e Degas, Sisley, Monet, Corot e outros ilustres da arte dos últimos 150 anos.

Ao lado do museu, a Casa da Moeda constitui um marco histórico na evolução da cidade e do vice-reino e retém a curiosidade de ter sido a última casa ocupada na cidade por Simón Bolívar — neste perímetro da zona histórica encontramos várias casas ligadas ao “Libertador”. Um desvio levar-nos-ia ao Museu do Ouro, outro dos que constituem o triângulo dourado museológico da Candelária. Não fizemos esse percurso linear, mas abrimos aqui uma janela para esse “tienen que ir”,  como ouvimos repetidamente. Afinal, é um dos maiores do seu género no mundo e constitui a reminiscência possível do El Dorado que os espanhóis buscaram incessantemente por terras colombianas, desde que ouviram a história de uma cerimónia muísca de entronização em que o herdeiro se cobria de pó de ouro e, numa balsa, juntamente com os caciques locais, cada qual carregado de ouro, esmeraldas e outros metais preciosos, fazia oferendas aos deuses no meio do lago de Guatavita.

O que vemos hoje no museu “é o que os espanhóis deixaram”, diz a guia — e entre tudo, o modelo em ouro da balsa cerimonial que prova a existência de tal ritual (que, porém, terá terminado muito antes da chegada dos espanhóis). É uma peça importante, a Balsa do El Dorado, mas está longe de ser a única neste museu que percorre todos os povos pré-colombianos que habitaram o território do que é hoje a Colômbia. Nem só de ouro — e esmeraldas, a pedra nacional — se faz o museu. Há cerâmica e tumbaca, platina e conchas, entre outros materiais que constituíam as riquezas de cada povo; compõem objectos de todos os tipos, dos mais prosaicos, como taças, a fúnebres, como sarcófagos ou urnas, a ornamentais, sacrificiais, cerimoniais, oferendas; uns são delicadas filigranas, outros são formas toscas. Há coroas, brincos, narigueiros (“Saben como se llaman hoy? Piercings.”) e objectos mais idiossincrásicos como o poporos — recipiente que podia tomar várias formas, humanas ou animais, e que servia aos xamãs para o ritual de mascar coca durante cerimónias religiosas e assim conectar-se com o mundo dos deuses — ou emblemáticos, como a peça que representa um homem e um morcego e que é o símbolo de uma das cervejas nacionais, a Club Colombia. Esta não é uma mera exibição de peças, conta a história dos vários povos, do seu quotidiano e dos seus rituais sagrados — a visita termina precisamente num ritual, na sala da oferenda, que nos leva num voo sagrado, ao som de cantos xamânicos e com um jogo de luzes que ilumina várias peças de ouro.

Coração bolivariano

Isto, o ouro e esmeraldas, “foi o que trouxeram os espanhóis para aqui”. Cá fora, está o resultado dessa viagem. Vamos à Praça Bolívar, que começou por ser a plaza mayor e continua a ser a encruzilhada da cidade. Há lamas a passear, indígenas com os trajes típicos, uma banca com CD pirateados sem pudor sonoro, uma dupla feminina brasileira a tocar standards brasileiros aos pés da catedral — e pombas por todo o lado. Estamos rodeados de símbolos do poder político e legislativo, da cidade, do país, do clero: a catedral primaz, casa do cabido e palácio episcopal, o Capitólio (sede do congresso), o edifício da câmara, o Palácio da Justiça (novo edifício depois da destruição do anterior, em 1985, em confrontos entre militares e guerrilha que tiveram um saldo de 350 mortos) — junto a este, num espaço recolhido da praça, a “Casa del Florero”, o Museu da Independência, edifício modesto com varandas de madeira bem ao estilo colonial mas com a memória de ali se ter dado o grito de independência. Coincidência (ou não), há um guerreiro pré-colombiano a deambular por aqui, mesmo atrás da banca onde as mazorcas de maiz (milho) assado reluzem — mas o cheiro que tinge o ar vem de uma porta estreita: “La Puerta Falsa” é uma instituição da Candelária, conhecida pelos seus tamales e pela (estranha) combinação de queijo e chocolate quente, parte da tradição local.

Percorremos as ruas e ruelas em torno da Praça de Bolívar entre história e recordação de heróis da independência, conventos seculares, palácios e o belo Teatro de Colón, edifício neoclássico em obras de restauro. O Palácio de Nariño, sede da Presidência da República, por detrás do capitólio, merece barricada na rua — militares revistam os sacos dos transeuntes — mas a atmosfera é descontraída, com vendedores ambulantes de tudo, lojas de artesanato- joalharias (mistura algo improvável, poderemos pensar, não fossem as esmeraldas um dos produtos “típicos”), restaurantes ao estilo “el cuarto de San Alejo”, que é como quem diz, com decoração antiga, recuperando velharias que, afinal, combinam na perfeição com a arquitectura colonial destes espaços.

Não estivemos em Bogotá num domingo, logo não tivemos oportunidade de pedalar pelas suas avenidas; como não pudemos ir a nenhum dos seus célebres “mercados de pulgas”, cruzamentos entre feiras da ladra e mercados de rua, cada qual com a sua vocação mais ou menos definida, mas todos um ponto de encontro tradicional de bogotanos em busca de artesanato, antiguidades, especialidades gastronómicas, música e toda uma série de produtos novos e usados que a imaginação albergue. Mas vamos a Usaquén, onde se realiza um dos mais tradicionais destes mercados de pulgas — e vamos até lá agora porque é, sobretudo, a arquitectura colonial que recebe este mercado de pulgas que fechas dezenas de ruas. Até há poucos anos, era uma povoação fora da capital (de origem muísca), agora, somos acompanhados pela malha urbana até lá, bem no Norte, encostado às montanhas.

Em torno de uma antiga hacienda, a de Santa Bárbara (monumento nacional feito centro comercial), organiza-se o núcleo histórico desta localidade que mantém a aura dos pequenos pueblos. Organiza-se em torno de uma praça-jardim tradicional — bancos, árvores, relvados — encimada por uma igreja: às 19h dobram os sinos. A tranquilidade quebra-se nas ruas circundantes — de pubs irlandeses a cafetarias locais com fachada por detrás de gradeamento que enforma esplanadas, de bailaderos onde ao final da tarde já se dança nos terraços a bares cosmopolitas, do Crepes & Waffles (que não serve a tradição à mesa mas é referência por empregar apenas mulheres cabeças de família) ao El Corral que, asseguram-nos, tem os melhores hambúrgueres do país, de restaurantes de design aos diários. Ao domingo, as ruas são invadidas por vendedores e passeantes, “como formigas”, diz a proprietária do Usaquén Arte y Café (onde a cerâmica anda de mão dada com o café), em frente ao parque de estacionamento onde começou o mercado, muros cobertos de grafittis de personagens e locais históricos; num dia de semana há barracas brancas montadas junto da hacienda, algumas abertas.

Navegação circunvalar

Não é fácil mover-nos em Bogotá porque a cidade é um organismo em crescimento constante — a orientação faz-se de sul para norte, de oriente para ocidente, sendo que ela nasceu num canto agora a sudeste (a maneira mais fácil de percebermos mais ou menos onde estamos é tentar buscar os cumes montanhosos; na Candelária eles são sombra protectora). Numa cidade que viu a sua população multiplicar-se várias vezes ao longo do século XX, tendo recebido muitas vagas de deslocados pela instabilidade que a luta armada entre guerrilheiros e governo provocou no país rural, há áreas imensas cobertas de “favelas” nos seus limites; no seu interior também se vêem, sobretudo quando passamos pela Circunvalar (como nome indica, a artéria que ladeia o centro, rente ao sopé das montanhas, e que nada tem a ver com uma via rápida), onde uma curva nos mostra casario baixo, em tijolo cru ou ocre (muitas vezes em colinas ancoradas em muros de betão construídos para evitar os deslizamentos de terras frequentes) e a outra nos revela prédios modernos, em tijolo maciço (uma matéria-prima “barata, bonita e refractária”), com jardins pelo meio.

É motivo de orgulho, esta aparente mistura de “estratos sociais” que os bogotanos não param de salientar. Mesmo se vemos, entre o trânsito intenso das horas de ponta, pessoas em cadeira de rodas aventurando-se nas estradas para pedir esmolas; mesmo que nos semáforos as paragens sejam tantas vezes aproveitadas pelos lavadores de janelas para ganhar uns poucos pesos; mesmo que abundem os carros-bancas onde se vendem de chocolates ou água a cigarros (também à unidade).

A Bogotá fora da Candelária não é particularmente bonita. É uma cidade que alterna entre edifícios baixos, linhas rectas e feições básicas, típicos da América Latina, ou de edifícios dos anos 1950-70, muitos em betão. O que não significa que não haja surpresas. Uma das mais evidentes é o número de casas de influência inglesa, sejam de beira de rua com comércio no rés-do-chão, sejam mansões escondidas em grandes jardins. No meio dos edifícios que crescem cada vez mais alto, já se distingue arquitectura mais arrojada.

É fora das principais avenidas — a Séptima é quase incontornável, uma vez que liga, em linha recta, o norte da cidade à Candelária — que se encontra mais diversidade. Mas longe de grandiosidades: há muitas vezes um ar inacabado ou de semi-abandono, mesmo quando as paredes até escondem lugares de pedigree, como na Macarena ou na zona G, conhecidas pelos restaurantes. É caso para dizer que as aparências enganam. Algumas avenidas que percorremos já foram rios e houve até um lago onde é agora o pólo financeiro da cidade (na Rua 72). Depois há ironias que nos fazem sorrir. Na estrada onde a Quinta de Bolívar é pólo turístico vemos a seguir o Palacio del Collesterol. Um conjunto de bancas improvisadas à beira da rua, como um pequeno arraial, onde se vende caldo de costillas, tamales, sopa de arroz, mondongo, entre outras especialidades nacionais – e doces dentro de sacos plásticos compridos.

Entre o sal e as estrelas

Se no centro da cidade as “favelas” se misturam com bairros de classe média, nos extremos sobrevivem sozinhas. Seguimos para Norte e vemos as suas manchas recortadas nas encostas e mesmo ao lado da estrada os cemitérios “dos ricos” (sim, aqui não somos todos iguais na morte) — para promoção da biodiversidade, as pessoas são instadas a plantar árvores na cidade em vez de colocarem flores nos cemitérios. Mais adiante, as encostas andinas estão novamente verdes com grandes casas abandonadas a espreitar — expropriadas porque foram construídas ilegalmente.

Estamos a entrar na savana de Bogotá. Passamos a inesperada Puente del Común, obra clássica do período colonial sobre o rio Bogotá no meio de quase nada, e em Chía (“deusa da lua”), onde hoje vemos condomínios fechados habitados por bogotanos que trocaram a capital pelo campo às suas portas, há um ano veríamos campos de batatas. A natureza envolve-nos em campos verdes, montanhas arborizadas e assim chegamos a Zipaquirá, cidade colonial, onde se encontra a primeira maravilha da Colômbia. No Cerro do Zipa (o chefe máximo dos muíscas), a terra tem sal (40% do que é consumido no país) e o trabalho dos mineiros foi transformado num altar católico. A Catedral do Sal é a segunda do seu género no mundo e leva-nos 180 metros terra adentro em ambiente que um jogo de luzes torna feérico — avançamos pela Via Sacra, com estações que se podem entranhar na rocha (de sal, claro), para desembocarmos em três enormes naves que são autênticas obras de arte. Neste complexo há ainda espaço para lojas, auditório, centro de convenções, praça de restauração, café, museu e uma sala para espectáculo tridimensional – toda uma vida subterrânea insuspeita.

Insuspeita também é Bogotá. Mostra a sua cara a quem a visita — não nega o seu (recente) passado violento, mas afirma a sua (recente) vocação cosmopolita. Não é uma beleza convencional, mas compensa quem se dispuser a percorrer-lhe as entranhas. É desigual em mais do que um sentido mas ainda acredita no El Dorado — e esse é comum e não é de ouro, é de uma cidade para todos. “Aqui vive-se a sério”, diz-nos Andrés Victoria. E mais perto das estrelas.

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À noite, rumba

Chegamos a Bogotá à noite, quase 24 horas depois de termos saído do Porto e de passarmos por Lisboa e Miami. Não vamos negar: o cansaço é grande; mas a Zona Rosa (onde se embrulha a zona T) vê-se e ouve-se irresistível — e o nosso hotel que é bem no centro dela. É quase meia-noite neste bairro de classe alta: vemos lojas de marca e grandes centros comerciais, mas a esta hora são os restaurantes e os bares que marcam o ritmo. Ouvimo-lo em cacofonia musical que verte para as ruas, onde os táxis parecem ser os únicos automóveis a circular — e nem é sexta-feira, dia forte da rumba. Acabamos por assentar arraiais num bar bem perto do hotel e temos a nossa iniciação aos dois géneros musicais mais populares na Colômbia — a cumbia e o vallenato (que em Bogotá se prefere na versão “delicodoce”, o vallenato llorón) – e ao hábito de beber aguardente (normalmente de anis), de preferência de Antioquia (uma das mais conhecidas é a Antioqueño e pedir um antioqueño é o mesmo que pedir aguardente, não importa a marca), a garrafa que vemos em várias mesas.

Não sabíamos então que estávamos bem perto de dois ícones da noite bogotana. Ao virar da esquina, a Casa en el Aire está literalmente no ar, como outro edifício em cima de um prédio baixo. É uma réplica de uma casa tradicional caribeña, na arquitectura e no ambiente: os acordeões comandam a festa de vallenato e o folclore colombiano anda à solta. Algumas portas adiante do “nosso” bar, para lá de um centro comercial, uma pequena praceta dá acesso ao Andrés D.C. – é uma instituição bogotana (o original fica nos arredores da capital, em Chía), mais que não seja porque é “crazy”, repetem-nos. Aqui, a rumba atinge a perfeição com a união de três dos grandes prazeres da cidade, comer, beber e dançar (“restaurante, bar y bailadero”), em quatro andares que compõem (um)a divina comédia: começamos no inferno e vamos subindo pelo purgatório e terra até finalmente chegarmos ao céu. A decoração é kitsch e barroca, com diabos e anjos — também andam entre nó —, santos e santas, a destacarem-se no meio de um bricabraque inimaginável; o ambiente é eléctrico e há televisões em todos os cantos para vermos o que se vai passando noutras áreas. A música começa com os grandes sucessos internacionais (novos e velhos) e vai subindo em volume e ritmo à medida que a hora de jantar vai passando e que as “pistas” se vão enchendo de bailarinos a ensaiar passos de salsa e vallenato — aqui, em Bogotá, a música é feita para pares.

Há outras zonas de rumba em Bogotá — na Candelária, notoriamente mais boémia e informal, no Parque del 93 mais à imagem da Zona Rosa — mas uma coisa é certa: os ritmos tradicionais (e são muitos neste país) estão quase sempre em maioria. O orgulho na cultura nacional é uma coisa recente e transversal a grupos etários e classes sociais. Desconhecer Carlos Vives, cantor e compositor de vallenato, é considerado quase um crime de lesa-Colômbia — e não saber dançar é algo inconcebível: não importa qual o estilo, os colombianos (que até têm em Cali um viveiro de campeões mundiais de salsa) parecem dançá-los todos.

Da yuca ao cielo – à mesa

Tentamos saber por diversas vezes qual o prato tradicional da gastronomia colombiana. De todas as vezes recebemos a mesma resposta — em cada região há gastronomia diferente, tanta. O ajiaco santafereño, resumidamente uma sopa de batata, bananos (banana doce), abacate e frango, já foi considerado o prato nacional e continua a ser um ícone — mas, como diz o nome, é de Bogotá. Também a bandeja paisa é referida — feijão, arroz, chouriço, morcela, carne moída, chicharrón, ovo estrelado, plátano (bananas grandes), arepa, abacate e salada —, porém é de Medellín e Antioquia. Por isso, vamos falar do que é incontornável, como as arepas em várias declinações (as de chócolo com queijo das mais populares, as de ovo, “as divinas” — que não chegamos a provar), os patacónes, que são plátanos prensados, a yuca (um tubérculo). Nós comemos carne de vaca (corte de res) e novilho, papas chorreadas (batatas que mantêm um pouco da casca e têm por cima creme de leite e queijo) e criollas — sem ilusões, a comida colombiana não é para estômagos sensíveis, é muito substancial. Nos doces, é obrigatório provar o arequipe (a versão colombiana do dulce de leche) com figos e são imperdíveis os sumos naturais que deitam mão às dezenas de frutos que por lá pululam. Lulo (este em leite), tamarindo, corozo são os mais “exóticos” que experimentámos (todos aprovados); mas os de maracujá, goiaba, manga, tangerina, até limonada (com ou sem coco) parecem ganhar novos sabores na Colômbia.

Mantendo-nos nos sabores colombianos (deixando de lado uma imensidão de restaurantes internacionais), entre cozinha gourmet ou paisa, podemos ser surpreendidos. Nós fomos ao céu com a gastronomia sensorial do El Cielo, onde o jovem chef Juan Manuel Barrientos alia cozinha tradicional aos sentidos de forma original e, por vezes, pueril. O menu “Experiência” foi isso mesmo — inolvidável.


Colômbia busca o realismo mágico

Depois de “Colômbia, o único perigo é o de que queira ficar”, chegamos a “Colômbia, Realismo Mágico” – o turismo colombiano PROEXPORT primeiro finta a reputação de país perigoso, para apostar na cartada literária para promover o país no exterior. Um país que é o único na América do Sul com litoral no Atlântico e no Pacífico e que tem o seu centro, e área mais populosa, enquadrada por três frentes dos Andes. Cidades cosmopolitas, como Bogotá ou Medellín — paradigma da transformação recente da Colômbia, laboratório de arquitectura e capital da moda sul-americana —, montanhas nevadas diante do Atlântico (Santa Marta), cidades históricas, como Cartagena das Índias, ou pueblos coloniais como Mompox, floresta amazónica, ilhas caribeñas, cafetais, sítios arqueológicos milenares, natureza pródiga em fauna e flora — tudo embrulhado numa cultura vibrante, são alguns dos cartões-de-visita da Colômbia, que quer ultrapassar os fantasmas do passado (recente) e afirmar-se como destino de férias e de negócios.

GUIA PRÁTICO

Como ir
A FUGAS viajou com escala em Miami, mas a partir de 1 de Julho a TAP vai ligar Lisboa a Bogotá.

Onde dormir

Bohème Royal Hotel
Zona Rosa: Calle 82, 12-35
www.bohemeroyal.com
Preço: A partir de 130€

Onde comer

El Cielo
Zona G: Calle 70, 4-47
www.elcielococinacreativa.com

Al Son de los Grillos
La Candelária: Calle 10, 3-60
www.elsondelosgrillos.com

Tábula
La Macarena: Calle 29, 5-90
http://elorigendelacomida.com

14 Inkas
Usaquén, Calle 119 B, 5-43

Andrés D.C.
Zona Rosa: Calle 82 interior, Centro Comercial El Retiro, 12-21
www.andrescarnederes.com


A Fugas viajou a convite da TAP

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