Fugas - Viagens

  • Frederico Ribeiro supervisiona a cozinha de produção do Per Se, o famoso restaurante três estrelas Michelin de Thomas Keller
    Frederico Ribeiro supervisiona a cozinha de produção do Per Se, o famoso restaurante três estrelas Michelin de Thomas Keller ELENA LIAO
  • Kalustian
    Kalustian ELENA LIAO
  • Uncle Boons, sala Oleg March
    Uncle Boons, sala Oleg March OLEG MARCH
  • UncleBoons, prato Jaan Bangsaen
    UncleBoons, prato Jaan Bangsaen JAAN BANGSAEN
  • O hambúrguer da chef April Bloomfield
    O hambúrguer da chef April Bloomfield DR

A Nova Iorque de Frederico Ribeiro

Por Miguel Pires

Frederico Ribeiro é sub-chef no Per Se de Nova Iorque, três estrelas Michelin e um dos melhores restaurantes dos EUA. Mantém a sua alma lusa do Norte mas o espírito já tem raízes assentes na Grande Maçã. Andámos com ele pelos seus lugares da cidade, num tour gastronómico entre lojas, mercados, bares e restaurantes.

O encontro estava marcado para as 11h30 no Gasoline Alley Café, no Noho. Chego atrasado, mas logo ao entrar o reconhecimento é mútuo, apesar de só nos conhecermos por email. Cumprimentamo-nos e fazemos conversa de circunstância enquanto esperamos por um café americano e um croissant. “Aqui é melhor pelo café, mas pela comida prefiro o Bowery” (a umas dezenas de metros). O Alley é um dos muitos locais especializados em café que abundam por Nova Iorque, sobretudo nas zonas mais alternativas da baixa de Manhattan (Downtown). É um local para apreciadores, uma espécie de Sturbucks alternativo de decoração despojada. Aqui pode-se fazer uma refeição ligeira, beber um latte ou um capuccino, acompanhados de um donut ou de um croissant artesanal.

De olhar vivo e sorriso franco, Fred, como é conhecido entre amigos, mostra-se relativamente reservado, porém de conversa fácil. Nos últimos oito meses, o português natural de Paços de Brandão, Santa Maria da Feira, tem supervisionado a cozinha de produção do Per Se, o famoso restaurante de três estrelas Michelin, de Thomas Keller. O posto obriga-o a ser um dos primeiros a chegar ao trabalho, por volta das seis da manhã (e onde fica até às oito da noite). Todavia, o horário tem-lhe permitido usufruir da cidade, sobretudo ao fim-de- semana.

Utensílios e exotismo

Com o pequeno-almoço tomado, Frederico propõe que caminhemos em direcção a Midtown. Nesta manhã o sol dá um ar de sua graça, após muitos dias de céu cinza gelado e temperaturas entre os 0 e os -14º C.

Próximo da NYU (Universidade de Nova Iorque), fica a Broadway Panhandler, uma loja onde se encontra todo o tipo de gadgets de cozinha: do fogão de ferro a lenha à faca japonesa de 1000 dólares. O interessante deste lugar, “a segunda loja mais antiga de Nova Iorque”, segundo conta Frederico, é que, não sendo muito grande, tem tudo o que interessa a um verdadeiro entusiasta da cozinha — incluindo tagines made in Portugal.

Seguimos para o Union Square Park. Numa das ruas laterais fica o Aldea, o restaurante de uma estrela Michelin de George Mendes, filho de pais portugueses. A razão da nossa vinda a este parque prende-se com o Union Square Greenmarket, um mercado onde os agricultores da região de Nova Iorque vêm vender os seus produtos quatro vezes por semana. Na Primavera e no Verão, as épocas de maior abundância agrícola, chega a haver mais de mil variedades de produtos hortofrutícolas, uma boa parte de produção biológica e de proximidade. “No Verão, venho cá com os meus colegas do Per Se. Vimos bem cedo e, depois, cozinhamos o que compramos no menu da noite.” A manhã já vai longa e o Inverno rigoroso não tem sido o melhor amigo do agricultor. Ainda assim, numa volta pelo mercado, encontramos muito por onde escolher, entre bancas de frutas e legumes, queijos e iogurtes artesanais, enchidos de avestruz, xaropes de ácer (maple syrup) ou batatas — da ratte à roxa peruana, passando pelas german butterball, as preferidas no Per Se.

A próxima paragem é na Kalustyan’s, uma loja de especiarias fundada em 1944 e onde hoje se pode encontrar uma miríade de ingredientes que até o maior dosconnaisseurs desconhecerá. Passeamos por corredores apertados e prateleiras cheias de produtos. Do óleo de macadamia francês à pasta de anchova de Itália, dosescargots (caracóis) da Indonésia à água de flor de laranjeira do Líbano ou à flor de sal do Algarve, são mais de 4000 mil produtos à venda.

Hambúrguer Michelin

Saímos da loja com o nariz impregnado de aromas e Frederico Ribeiro propõe um salto ao Spotted Pig, o gastro-pub da chef April Bloomfield, que tem como sócio orapper Jay Z. O restaurante não aceita reservas, por isso deixamos o nome e procuramos um espaço junto ao balcão (são conhecidas as histórias de famosos que ficam apeados à porta sem conseguirem mesa). A azáfama é grande mas reina a boa disposição, mesmo entre os empregados, sem mãos a medir. Pratos e pratos vão passando por nós até conseguirmos que nos atendam. Quando julgamos que é finalmente a nossa vez, vemos passar mais uns rolinhos de arenque avinagrados em direcção à mesa Mario Batali, o chef das Crocs laranja que a TV tornou celebridade mundial.

Custa a crer que o pomposo guia francês tenha atribuído uma estrela Michelin a um local tão descontraído. Contudo, a cozinha inglesa e italiana, com um toque nova-iorquino, de Bloomfield merece a comenda. O hambúrguer, com batatas fritas e queijo Roquefort, custa 21 dólares e é francamente bom, tal como o arenque e, sobretudo, a gulosa tosta de paté de fígado de galinha. Elena, namorada de Fred, junta-se a nós ainda a tempo de um indecoroso donut recheado com creme de baunilha, quando finalmente conseguimos mesa. O espaço é apertado e todos acabam a conviver com todos. É o espírito de Nova Iorque e de Greenwich Village.

Nessa noite jantamos num restaurante tailandês, mas antes Frederico e Elena querem que passemos pelo PDT (Please Don’t Tell), um concorridíssimo bar de cocktails onde só conseguimos mesa graças à persistência de ambos (100 chamadas efectuadas, registam os telemóveis do casal).

Frederico pede que sejamos pontuais. É que mesmo com marcação só deixam entrar reservas completas e, em caso de atraso, perde-se o lugar. Com o aproximar da hora, às 18h30, começa-se a formar uma fila cada vez maior. A porta do bar fecha-se com a entrada de cada grupo, como se fosse um local clandestino em tempos de lei seca, e para que se abra é necessário ligar de um telefone antigo de parede.

À nossa volta, enquanto esperamos, grupos de jovens partilham comida rápida em pratos descartáveis. Noutra latitude seria inimaginável que um dos mais concorridos bares da cidade pudesse funcionar numa sala contígua de um hotdog joint. Já no interior, o ambiente é um pouco mais selecto, dentro do que a palavra pode significar no léxico do East Village. Alguns cocktails têm nomes divertidos, como Prinkled in pink ou Hans Solo. Contudo, o assunto é sério: não há facilitismos com caldas de açúcar para gostos fáceis. Em Nova Iorque nunca se deve confundir informalidade com falta de rigor, sobretudo em lugares muito concorridos.

Do Sudoeste Asiático à China

Duas bebidas depois é tempo de rumar ao Uncle Boons, um dos restaurantes mais badalados de Downtown. Continuamos em registo descontraído mas a temática agora é outra. Parece que estamos a ser transportados para o restaurante de um filme de Bruce Lee, versão boxe tailandês. O Uncle Boons pertence ao casal Ann Redding e Matt Danzer, ambos ex-Per Se. Filha de mãe tailandesa e pai americano, Ann nasceu e viveu em ambas as culturas e, tendo o casal passado por restaurantes de cozinha de base francesa, torna-se menos estranho que entre os pratos de raiz deste país asiático haja outros onde se nota uma fusão de culturas, como nos escargots com coco e lima ou nas molejas com salada de massa crocante. “Gosto de vir aqui porque as conjugações que eles fazem são diferentes. Não encontro isto em mais lado nenhum”, diz Frederico Ribeiro. Muitas vezes, nas cozinhas asiáticas do Ocidente disfarça-se a mediania do produto com uma profusão de temperos (alguns bem fortes). Não é o caso. A cozinha de Ann e Matt tem vários elementos no prato, mas a qualidade do produto de base e a mestria como conjugam os ingredientes evidenciam-se.

O dia foi intenso e longo, mas um roteiro gastronómico pelos lugares de Frederico Ribeiro em Nova Iorque não podia terminar sem passarmos por dois outros endereços que fazem parte da sua vida na cidade: o Golden Unicorn e o próprio Per Se, onde trabalha, pelo que marcámos novos encontros para os dias seguintes.

Domingo pelas onze da manhã há já um aglomerado de pessoas à espera na recepção improvisada do número 18 da Broadway, em Chinatown. O Golden Unicorn ocupa os segundo e terceiro andares, mas, para evitar confusões, a triagem começa no piso térreo. Trata-se de um restaurante chinês, famoso pelos seus dim sum, que Frederico Ribeiro e Elena Liao (que é natural da Formosa) frequentam, sobretudo no brunch de domingo. A decoração é kitsch e o espaço lembra um salão de casamentos e baptizados. Os empregados vão passando entre as mesas com carrinhos repletos de iguarias. Os mais concorridos são os que trazem empilhados cestos de bambu com dim sum.

Todavia, há muito mais por onde escolher. Elena negocia directamente em mandarim com uma das “condutoras” e, de repente, na nossa mesa , além de todo o tipo de embrulhos cozidos a vapor (os dim sum), temos patas de galinha fritas, um caldo gelatinoso (congee), taro cozido e entrecosto com abóbora num molho ligeiramente adocicado. No fim pouco sobra deste muito recomendável e económico almoço, ou pequeno-almoço, consoante a cultura em que se nasceu. Esta é uma das vantagens de Nova Iorque: podermos viajar pelo mundo em poucos quilómetros quadrados.

Frederico e o Per Se

Na segunda-feira de manhã visito o Per Se, no Time Warner Center, em Columbus Circle, mesmo no início do Central Park. Frederico espera-me na porta de serviço e conduz-me pelos bastidores do restaurante. A cozinha é enorme e funcional e organizada segundo o modelo clássico francês (carnes, peixes, guarnições, saucier, entradas frias e pastelaria). O português é um dos cinco sub-chefs e nos últimos tempos tem supervisionado a cozinha de produção, onde se encontra outro luso, o recém-chegado Rodrigo Parracho. Aqui preparam-se os ingredientes e as bases para os serviços de almoço e de jantar.

Como sub-chef, Frederico é incentivado a dar ideias e a desenvolver pratos. Por exemplo, por estes dias andou a testar uma morcela de sangue que veio a ser utilizada numa das propostas do menu (que muda todos os dias). Também tem liberdade para escolher produtos, que vêm um pouco de todo o lado, como é o caso do salmonete que exibe, proveniente de Sesimbra.

Ao contrário de muitos restaurantes de topo, são raros os estagiários na cozinha. O Per Se tem fama de incentivar e remunerar acima da média os seus cerca de 40 colaboradores, o que não deixa de ser visto como sendo justo, já que é um dos restaurantes mais caros dos EUA: o menu de degustação, a única opção possível, custa 310 dólares ao jantar (sensivelmente 224 euros). Porém, a conta final, com suplementos e vinhos, pode facilmente duplicar ou triplicar.

Frederico está no restaurante desde 2011 (entrou como chef de partida), mas antes já tinha passado por outros 3 estrelas Michelin, como o Martin Berasategui e o El Bulli, em Espanha, ou o Fat Duck, em Inglaterra (nestes dois últimos como estagiário). No seu horizonte mais próximo não tem previsto o regresso a terras lusas. É que se a ambição de ter um espaço próprio existe, o mais provável é que venha a acontecer na sua actual cidade. Porém, neste momento o português mostra-se tranquilo e sem pressas para dar esse passo, dado que sabe que ainda pode progredir onde está. Na próxima semana vai regressar à cozinha de serviço e com esta mudança voltará de novo a estar no centro da acção. A empratar ou no passe, pelas suas mãos andará uma boa parte dos mais de dez pratos do menu de degustação (diferente todos os dias) que faz as delícias dos cerca de 140 comensais que entram diariamente pelo Per Se, um dos restaurantes mais prestigiantes do mundo.

--%>