Fugas - Viagens

  • Nelson Garrido
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Fundão, a terra como princípio de tudo

Na primeira curva, em Janeiro de Cima, um rapaz entroncado segura uma vara de sete metros. Nem todas as peles aguentam o meio-dia serrano, mas Nélson tem de cumprir a lista escrita em francês na parte da frente da t-shirt. Diz assim: “A fazer antes do final das férias: viver uma paixão de Verão; fazer a festa; topar miúdas; bronzear-se; fazer churrascos.” A bordo da barca mais nova da aldeia, o rapaz natural de Janeiro consuma o penúltimo objectivo. “Quando [o rio] é menos profundo, dá para ganhar mais velocidade”, diz, apontando a vara contra as pedras. O suor é em bica porque nos quer mostrar a melhor viagem pelo Zêzere na embarcação de pinho e cadernos (peças raras em forma de canto encontradas nas oliveiras) a estrear. Um senhor de boné vermelho pesca trutas à cana e um mosquito zonzeia frente aos narizes, de quando em quando. É o máximo, em medida de actividade, que se pode ter no curso até à central eléctrica que abastece a aldeia.

Torrados, saltamos para a terra a piscar o olho às churrasqueiras da praia e aos namorados de um Verão relvado. “Ó da barca!”, gritam da rua de xisto, quando, de uma porta em madeira, as mãos de Manuel da Encarnação surgem à espreita. “Fui criado quase dentro delas”, comenta. “Elas” são as barcas e ele é o único da aldeia a saber construí-las de uma ponta à outra, com as mãos grandes como troncos tardios. Dantes (o senhor Manuel já não é “de ontem”, nasceu em 1933, como faz questão de esclarecer) “não havia pontes, não havia nada, só a barca”. Por isso, era nela que se transportava o gado, a fruta, o peixe, a carne, os legumes e os cereais, tornando possível o comércio entre os concelhos da Pampilhosa e do Fundão. “Havia dois barqueiros profissionais a quem a freguesia pagava em alqueires de milho”, conta o carpinteiro, lembrando “o tempo em que o rio era grande”. Relata a vida, a travessia de Vilar Formoso para a rota emigrante, em 1961, oferece um copo de vinho (“é do meu”), um pedaço de pão, o que houver na casa. “E se hoje fosse preciso passear as meninas ou senhoras na barca, também ia”, afirma. (Já nos haviam avisado que o bom beirão abre as portas de casa e dá tudo o que tem.) Mostra as cadeiras que trabalhou em cerejeira, a juntora, o serrote, a plana, a grelopa, os formões e as grosas. Os nomes de algumas ferramentas não existem no dicionário, mas o senhor Manuel garante que é mesmo assim.

A aldeia com a fragosidade do xisto e a macieza das gentes fica para trás. Gonçalo espera-nos perto de Bogas de Cima para mostrar as abelhas mais agressivas dos últimos tempos. “Estão assim porque há muita população e pouca colheita”, diz. Mas como agora “estão a roubar mel”, tudo bem, podemos aproximar-nos. Começou com duas colmeias “por brincadeira”, para polinizar as cerejeiras. Hoje, vai em 50. O bisavô “era um dos maiores apicultores da região” e depois “a paixão das abelhas veio ao de cima”. Além disso, produzir “o melhor mel que anda aí” — o da Cova da Beira — é uma questão de orgulho.

Gonçalo fica a decantar e nós seguimos estrada com o fôlego doce, prontos a enfrentar o volfrâmio, em Cabeço do Pião. O calor ainda torra e pede há muito um mergulho, mas o íman mineral chama-nos à aridez da Panasqueira. Bina colhe a roupa seca do estendal, enérgica e segura. “É só um bocadinho!” Vai buscar a chave do café (o único na povoação), onde mais tarde exclama: “Aqui somos quase 90!” Cabeço do Pião foi a nano-aldeia que o concelho do Fundão escolheu para firmar a sua Pousada da Juventude em xisto, onde nem sempre há águas com gás mas onde Bina assegura o jantar para os mineiros e a simpatia aos visitantes. “Como são homens, tem de ser, que eles não sabem cozinhar”, esclarece. A paisagem faz parte das minas da Panasqueira, mas é uma das duas áreas inactivas (a outra é a Panasqueira). Subimos ao guincho (ponto alto de observação) para cheirar os montes que ali se erguem. E, de repente, já não há figueiras, calam-se as cigarras, emudecem-se os “bons dias” na paisagem lunar. Fosse este o lugar de um conto e todos viveriam do silêncio para aprender a pensar o tempo.

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