Fugas - Viagens

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Fundão, a terra como princípio de tudo

Por Rute Barbedo

Se o Z é um som de ziguezagues, a serra faz-se pelo Zêzere à velocidade do mel e de almofada no sopé. Do Fundão à Gardunha — que foi pedir ao árabe o significado de refúgio —, os lugares são para colher amoras, testar o corpo em águas frias e falar das formas que uma abóbora pode tomar. Bem-vindos à época alta em realidade, para lá das cerejas.

Todas as noites, assim que se levanta o vento da Gardunha, um limão cai em frente à pensão Tarouca. Soltamo-lo num saco de maçãs colhidas pela tarde, enquanto as pernas, metidas em calções, sobem até ao Largo das Tílias. Alcandorada num andaime, NeSpoon — artista polaca que vê mandalas nos napperons — pinta uma parede gasta e porfia a sequência frutícola: “É a primeira vez na vida que tiro laranjas da árvore numa cidade!”

Fosse este o lugar de um conto e todos se fariam de frutas durante Agosto, deitados entre as serras da Estrela e da Gardunha. Afinal, o Fundão é uma exclamação de gravidade.

O dicionário dá-nos a palavra como o “fundo de um vale, entre elevações muito altas”, mas Alfredo da Cunha (historiador e jornalista fundanense) leva o pensamento mais longe, até ao latim: fundanus designava a terra, a herdade, a propriedade. “De fundo não temos nada. Estamos aí a uns 500 metros de altura”, esclarece o senhor António, historiador de vida e fumador habitual do café Aliança, na Praça Velha.

O certo é que, à terceira noite, volta a cair um limão frente à varanda e assim percebemos que cova é esta, a da Beira, onde a gravidade existe mas não se explica, tornando difícil a todos os Newtons dos pomares (e iniciados) sair daqui, como se as montanhas em volta fossem demasiado altas para se transpor. Foi o que aconteceu a Tânia Duarte, que abriu há dois meses, com o marido, uma loja na Rua da Cale, onde vende artesanato, tatuagens e serviços de estética. “[Por causa do desemprego] ainda pensámos em ir para Londres, mas depois não quisemos deixar o que é nosso. Sabemos que aqui o chão não falha”, conta de olhos firmes, comprovando que o maior bem do Fundão é o facto de ser um lugar real, sem holofotes nem castelos de néon. Quase nos vende os chinelos de couro feitos por uma amiga de Castelo Branco, mas voltamos ao foco: subir, que lá no alto brilha a Gardunha.

Contam que por cima dela flutuam discos voadores, que os serranos caminham descalços sobre o xisto e que os pastores palitam os dentes com navalhas de cortar queijo. (Para todos os efeitos, há alturas na vida de um homem em que a gordura é a virtude e a maçã é o pecado.) E as cerejas? “São as melhores!” Certeza de força bíblica, das poucas intocadas pela gravidade.

Não são boatos nem poética. Aqui, a terra é o princípio de tudo. Mesmo para quem está de passagem. “Ligamos o nosso programa turístico ao ciclo agrícola, porque a relação do povo beirão com a natureza, a agricultura e a religião é muito forte. É essa a nossa identidade, o que faz com que sejamos diferentes”, explica Patrícia Ramos, técnica superior de Turismo da Câmara do Fundão. No concelho, o ano começa com a neve; prossegue para os Sabores da Páscoa (entre bolos de azeite e papas de carolo); junta-se aos pastores e ovelhas na rota da transumância (em Maio e Setembro); atinge, em Junho, o clímax da cereja; torna à terra quando as castanhas estão maduras, assando-as na Maúnça; vai aos míscaros em Novembro; e celebra o azeite em Dezembro, no Festival da Tibórnia.

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