Fugas - Viagens

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    Lukas aguarda-nos junto a Markethalle 9, no distrito de Kreuzberg Nelson Garrido
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    O antigo Mercado, nascido em 1891, renasceu como uma espécie de praça de alimentação gigante Nelson Garrido
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Leste e é para aí, para um antigo parque da
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    Maria Gürtler cresceu na antiga Berlim Leste e é para aí, para um antigo parque da sua infância, que nos leva Nelson Garrido
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    Magnus Hedman, filho de suecos, quer mostrar, entre outras coisas, a feira de velharias da Boxhagener Platz, Nelson Garrido
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    Memorial de Guerra Soviético no Treptower Park Nelson Garrido
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Berlim não tem Muro há 25 anos. Ou tem?

Por Patrícia Carvalho

Lukas, Maria e Magnus guiam-nos por Berlim. E o muro? O muro não está lá há 25 anos, mas é quase sempre uma ausência presente.

Lukas Olfe tem um casaco comprido, que se agita, como a capa de um super-herói, enquanto atravessa as ruas de Berlim a passos largos. O berlinense, de 25 anos, está habituado a caminhar pela sua cidade. Aliás, tal como Magnus e Maria, Lukas não anda de carro.

Para os três alemães, os transportes públicos são a forma correcta de atravessar a cidade, de chegar a todo o lado. Na antiga Berlim Leste ou Oeste. Na Berlim única que todos apregoam, embora admitam que ainda há diferenças palpáveis no que foram, durante 28 anos, as duas metades da capital alemã. No ano em que se comemora o 25.º aniversário da queda do muro de Berlim, pedimos a três jovens com essa idade que nos mostrassem a Berlim deles. Lukas foi o primeiro com quem nos encontrámos.

Ele diz-nos onde temos de ir e, pela única vez durante os dias que passamos em Berlim, apanhamos um táxi, porque já estamos muito atrasados. Lukas aguarda-nos junto a Markethalle 9, o primeiro ponto da nossa paragem. Situado no distrito de Kreuzberg, um dos mais conhecidos da “cena alternativa” berlinense, o antigo Mercado, nascido em 1891, renasceu como uma espécie de praça de alimentação gigante, com produtos diferentes, saudáveis e apetecíveis.

“Eu e os meus amigos passamos por aqui muitas vezes às quintas-feiras ao final da tarde, porque é quando acontecem as ‘quintas-feiras de comida de rua’. Nessa altura, o edifício é tomado por bancas de comida de rua de toda a Berlim. O ambiente é excelente”, diz Lukas.

Quando visitamos o mercado é sábado, mas o ambiente é igualmente animado. Há gente por todo o lado, a comer ou a beber nas mesas com bancos corridos ou, à falta de melhor, nas escadas do próprio edifício. Sumos naturais, sanduíches, pratos vegetarianos, doces e peixe fresco acomodam-se nos joelhos, entre a algazarra de muitas conversas.

Lukas conta que o edifício, que pertencia à cidade, passou uma fase de decadência, e chegou a correr o risco de se tornar num supermercado, não fosse a oposição dos moradores. “Há três anos não havia nada disto”, diz o berlinense. O novo projecto, proposto à câmara por um pequeno grupo de investidores, está a cativar os jovens da cidade, mas não é isento de polémica.

Kreuzberg, diz Lukas, outrora um bairro sobretudo povoado por imigrantes e com rendas controladas, para onde se deslocavam os mais pobres, começou a mudar há “cinco ou seis anos”. Tornou-se o bairro da moda, com lojas alternativas, pubs e restaurantes onde os mais jovens queriam estar. Com isto, contudo, veio a “gentrificação”, a que o Markethalle 9 também não é estranho.

Lukas aponta um pequeno supermercado, instalado junto a uma das entradas do edifício em pedra e ferro, e diz que provavelmente daqui a um ano ele já não estará ali. Apesar de ser um supermercado barato que ainda serve muitas pessoas do bairro, não se enquadra na nova imagem do mercado e deverá desaparecer. O outro, que existe nas proximidades, é caro e Lukas não sabe onde as famílias mais pobres da zona irão fazer as suas compras. Ali, diz Lukas, “ainda subsistem dois mundos”.

Aproveitamos a deixa para lhe perguntar se ainda subsistem também duas Berlins, apesar de o Muro que separava a cidade já não estar lá. Ele diz que sim. “Diria que o lado Leste é mais triste e zangado”, defende. E depois pergunta se vimos as imagens nocturnas da cidade captadas por satélite e divulgadas em Abril deste ano, que mostram Berlim Oeste repleto de luzes brancas e Berlim Leste coberto por uma iluminação amarelada. Uma divisão clara, como se o Muro ainda lá estivesse

“Os mais velhos ainda falam do Muro, mas os mais jovens não. Não o sentimos, não o discutimos, queremos ser uma só cidade”, garante, para logo a seguir ressalvar: “É claro que isto depende sempre de com quem estás a conversar”.

Quando deixamos o Markethalle 9, seguimos a pé. Lukas diz que gosta muito de caminhar pela cidade, hábito que ganhou com a mãe, quando, ainda pequeno, ela o levava pela mão, explorando a cidade, procurando novos nichos, novas ruas, novas lojas. Hoje, ele repete essas caminhadas, fazendo as suas próprias descobertas. Foi assim que o estudante de Comunicação Visual/Design chegou à livraria Motto.

É preciso entrar numa espécie de pátio interior para se chegar à livraria aberta das 12h às 20h, da Rua Skalitzer, 68. Lá dentro, dá-se os retoques finais numa exposição de livros provenientes de Tóquio, com uma pequena feira, que será inaugurada às 17h. “Sou viciado em revistas e coisas de papel, por isso, esta é a minha loja. Há outras do género em Berlim, mas esta é especial porque tem uma selecção mais artística”, diz Lukas, enquanto vai folheando o exemplar mais recente da Flaneur e confessa alguma inveja pela sorte e talento dos três jovens de Berlim que conceberam a revista, apoiada pela Monocle, e que dedica cada um dos seus números semestrais a uma rua de uma cidade.

Lukas não gosta de perder tempo a falar do Muro, mas ele, inevitavelmente, acaba por esbarrar connosco. O estudante leva-nos até à característica Oberbaumbrücke, a ponte sobre o rio Spree, que com as suas torres pontiaguadas, separa Kreuzberg (Oeste) de Friedrichshain (Leste) e aponta: “O Spree é a fronteira com o Leste”.

A partir de 1963, dois anos depois do início da construção do Muro, a ponte tornou-se uma travessia pedonal, apenas para cidadãos do lado Ocidental. Com a reunificação de Berlim, os cidadãos dos dois distritos “rivais” decidiram resolver os seus diferendos com uma divertida batalha de água e comida podre, que costuma acontecer no último fim-de-semana de Julho. “A batalha foi proibida, porque era muito caro limpar a ponte, mas continua a acontecer. E o Leste ganha sempre”, diz Lukas, sorridente.

Dali vê-se a beira-rio, com algumas velhas construções de madeira, mas também com os novos edifícios de grandes companhias internacionais que estão a tomar conta das margens. É mais uma das imagens da gentrificação de que ainda há pouco falava o berlinense. Ele prefere virar costas e levar-nos para uma das suas zonas favoritas da cidade: a Rua Potsdamer.

Durante os tempos do Muro, a parte norte da rua era terra de ninguém. Mais conhecida como sendo uma espécie de “Red District” holandês em Berlim, a Potsdamer tem ainda zonas muito conotadas com a prostituição e o tráfico e consumo de droga, mas Lukas não se intimida. “A Potsdamer está a ganhar mais atenção, há cada vez mais galerias de arte. Aqui sente-se que há uma forma mais saudável de mudar”, defende.  

Ele gosta de ali estar, diz que é onde se sente mais em casa e, para mostrar uma das razões pelas quais se sente bem na Potsdamer, leva-nos até à antiga sede do jornal TagesSpiegel, que hoje está ocupada por lojas e galerias. Lukas espreita a loja conceptual de Andreas Murkudis, que está ali instalada. Brinca, dizendo que bem que gostaria de comprar alguma coisa mas não tem dinheiro para isso, e leva-nos depois a uma das galerias de arte do enorme prédio.

“Os meus pais são arquitectos e acho que gosto deste edifício por causa deles. Gosto da sua ligação com a galeria”, diz, enquanto explora o prédio de tectos altos e varandas ocasionais abertas sobre os espaços de exibição.

Lukas gosta de Berlim, mas nota-se que a cidade também o irrita. “Berlim é feita de pequenas aldeias que se uniram numa cidade grande, por isso há tantos centros. E Berlim continua a ser uma aldeia. Gostava que algumas coisas das grandes cidades viessem para cá e pudessem combinar-se com Berlim, mas talvez isso não seja possível”, desabafa, enquanto atravessa ruas cobertas de gruas, que dão forma a novos edifícios de habitação barata – a falta de casas a preços acessíveis é um dos maiores problemas da capital da Alemanha, explica Lukas – e nos dirigimos a uma das novas zonas favoritas do berlinense, o parque urbano de Gleisdreieck, na fronteira dos quarteirões de Kreuzberg e Schöneberg.

Com uma linha de comboio a correr-lhe por cima, o parque inaugurado em 2013 ainda cheira a novo e está recheado de adultos que correm, jovens de bicicleta, crianças que brincam, desportistas em torno de cestos de basquetebol ou artistas que fazem acrobacias. “O parque tem uma atmosfera urbana que não há noutros lugares de Berlim”, diz o estudante para quem a capital alemã é, claramente, demasiado sossegada.

Antes do dia acabar, Lukas ainda nos leva até à Neue Nationalgalerie (a Nova Galeria Nacional), que já fechou, mas cuja estrutura envidraçada também o atrai. “As vidraças não são todas iguais. As maiores são feitas apenas por uma companhia, fora da Alemanha, e a sua substituição é muito cara, pelo que, quando foi preciso substituir algumas, transformaram-nas em duas peças em vez de uma única”, diz.

Lukas aponta, do outro lado, o edifício dourado da Filarmónica de Berlim e lamenta que já não possamos ir visitar um dos espaços que seleccionara para nós – a Hamburger Banhof, antiga estação de comboios transformada em Galeria de Arte Contemporânea. Ele que sonha com uma Berlim mais urbana, mais mexida, mais cheia de novidades, termina o dia junto à Civilist, em Brunnestrasse, no quarteirão de Berlim Mitte, o único local da antiga Berlim Leste no itinerário que traçou.

Lá dentro vende-se roupa e calçado, “coisas que só se encontram aqui”, segundo Lukas, mas nem são tanto os produtos que o cativam. “A loja reflecte um estilo de vida, os donos não se preocupam com o aspecto, organizam eventos, fazem as coisas como querem”, diz. Mais do que um local para ir às compras, explica, a Civilist é um ponto de encontro de amigos que se juntam ali para conviver.

Cá fora, o horário diz que aos sábados a loja encerra às 18h, mas são 19h30 e as portas ainda estão abertas, enquanto os donos bebem cerveja, descontraidamente, no interior. Um pouco mais desta irreverência espalhada pela cidade deixaria Lukas feliz.

Memórias de infância

Maria Gürtler espera por nós junto à saída do metro, para que possamos apanhar um eléctrico em direcção ao parque Wuhlheide. Vamos para a antiga Berlim Leste, onde ela cresceu, sabendo que existira um Muro, mas desconhecendo que ele impedia, de facto, a passagem.

“Quero levar-vos ao FEZ [Freizeit und Erholungs-Zentrum, Centro para Crianças, Jovens e Famílias]. Era para aqui que os jovens da RDA [República Democrática Alemã] iam para obter alguma cultura. Fica num grande parque e no interior do edifício existem várias actividades. Eu adorava-o quando era criança”, diz.

Aos 25 anos, Maria tem um ar sonhador e, provavelmente, um pouco ensonado. Esteve a estudar fora de Berlim, em Dresden, e agora trabalha na zona Oeste da cidade, pelo que o parque da sua infância, que tanto nos quer mostrar, parece uma recordação algo vaga. Engana-se na paragem do eléctrico. Ri-se, pede desculpa, e, mesmo quando saímos, de novo, na paragem que lhe indicaram, pergunta a alguns transeuntes se é mesmo por ali que se acede ao FEZ.

Percebemos que entramos no Wuhlheide pela porta mais longínqua do FEZ ao fim de quase uma hora a caminhar pelos terrenos do parque desenvolvido entre 1919 e 1932. Passam por nós várias pessoas a correr, pais empurram carrinhos-de-bebé, enquanto Maria vai contando que, naqueles terrenos há uma mini linha de comboio, que ainda leva os mais pequenos a percorrer o parque, uma piscina, um lago e uma área de concertos. “O meu primeiro concerto foi aqui. Vim ver o Robbie Williams. Eu tinha 12 anos e implorei à minha mãe para vir”, diz, com o seu riso cristalino.

Maria, que trabalha na área de marketing e leva para casa, pelo primeiro emprego, cerca de 1600 euros, ainda não decidiu se quer perder dois anos de trabalho para investir num mestrado. Ter um bom salário é importante, diz. “A minha mãe ganha 950 euros e ainda recebe apoio do Estado. Na verdade, se ela não trabalhasse, receberia de apoio o mesmo que leva agora para casa, na totalidade, ao fim do mês, mas é assim que as pessoas do Leste são. Fazem qualquer coisa só para ter emprego”, diz.

E o Muro? “Eu sabia que havia um Muro, mas até aos 11 anos não percebia que dividia a cidade, que não era permitido passar”, diz. Ao contrário de Lukas, Maria diz que a questão do Muro é amiúde discutida em família. “Falamos sobre isso em casa, porque nos afectou. Muita gente ficou desempregada e o meu pai foi uma delas”, diz.

Além disso, há as “histórias” que fazem parte do património familiar. Como a da avó que, há cerca de 30 anos, queria ir ao aniversário de uma grande amiga, em Palma de Maiorca, Espanha. “A minha avó pediu um passaporte, dizendo que queria ir a Düsseldorf. Conseguiu-o e meteu-se no avião, sozinha, pela primeira vez na vida. Ela pensou em ficar lá, era a sua oportunidade, mas tinha cá a família e acabou por voltar”, conta a jovem de cabelos louros e olhos cor de amêndoa clara, enquanto percorremos o caminho entre as árvores, em direcção ao FEZ.

Com 25 anos, Maria já só conheceu Berlim sem um muro a dividi-la, mas, ainda assim, era no Leste que ficava enquanto crescia. Era ao FEZ que ia brincar. “Não íamos para Berlim Oeste porque era muito longe. Demorávamos cerca de uma hora a lá chegar”. Quando acaba de falar estamos junto ao edifício castanho do FEZ. Há crianças a dirigirem-se para o interior, mas descansamos cá fora um pouco, saboreando um dos deliciosos iogurtes gelados com fruta que se vendem ali ao lado.

Depois, espreitamos o FEZ mas não vamos longe. Sem tirar bilhete não se pode passar da entrada nem participar em qualquer uma das actividades que vão arrancando risos e gritinhos de entusiasmo às crianças. “Vinha ao fim-de-semana com os meus pais. Fazia workshops e havia um simulador, que nos permitia experimentar estar num local sem gravidade. Era muito divertido”, diz.

Os olhos de Maria abrem-se e, subitamente, ela diz que há outro sítio que gostaria de nos ter mostrado, se pudesse: o Spreepark. “Está fechado há anos e agora é um sítio abandonado, que já serviu de cenário para filmes, mas que se pode visitar, aos domingos de manhã”.

Maria começa depois a contar a rocambolesca história da família que venceu o concurso de exploração do parque, em 1991. Sem local de estacionamento por perto e com os preços cobrados para entrar a subirem, o parque perdeu público e começou a dar prejuízo. Em 2002, os gestores do parque e os seus funcionários mais próximos embarcaram para Lima, no Peru, levando consigo seis das principais atracções do Spreepark e com a autorização das autoridades alemães, que acreditaram que os equipamentos iriam ser reparados.

A família nunca mais regressou e o parque foi declarado insolvente. Mas a sorte de Norbert Witte, o dono do Spreepark, não foi melhor. Depois de ter falhado a sua tentativa de instalar um parque de diversões em Lima, foi preso, em 2004, e condenado a sete anos de cadeia quando tentava traficar cocaína da América do Sul para a Alemanha, escondida nas peças de um dos divertimentos.

A história de Maria deixa-nos com pena de não termos dado um salto ao Spreepark, mas descobrimos depois que a jovem está desactualizada: em Março deste ano a cidade comprou o parque e, desde então, não houve mais visitas.

Berlim é uma festa

Magnus Hedman está na Boxhagener Platz, na esquina entre Gärtnerstraße e Krossener Straße à hora combinada. Nós chegamos mais cedo, por isso já demos à volta à feira de velharias que ele nos queria mostrar. Há ali um pouco de tudo, desde uma banheira de hidromassagem a livros e roupa, bugigangas e cadeiras. “Há muito lixo, mas também se encontram peças de mobiliário fantásticas”, diz o jovem alemão, filho de suecos, de curtos caracóis revoltos e um sorriso permanente colado à cara.

A feira repete-se todos os domingos de manhã e os vendedores são quase sempre os mesmos, pelo que Magnus, que partilha uma casa com amigos ali perto, já os conhece bem. Natural de Freiburg, filho de suecos, está em Berlim há três anos, mas, pelo menos enquanto lá está (e ainda quer ficar por ali por uns tempos), já se sente berlinense.

Magnus está em casa e nota-se. Caminha de mãos nos bolsos, descontraído, pelas ruas do quarteirão de Friedrichshain que, a par com Prenzlauer Berg, se tornou um dos bairros boémios mais procurados pelos jovens, na antiga Berlim Leste.

“São zonas cheia de gente nova, com grande vida nocturna. Ou seja, é óptimo quando tens 20 ou 30 anos, até porque não é caro para viver. As rendas, comparadas com outras cidades, são baixas e podes sobreviver sem problemas. Eu gosto, por agora, mas não queria criar aqui crianças, se as tiver. Para isso, não tens de estar num sítio onde vês drogados e bêbedos todos os dias e isso é o que acontece aqui”, diz.

Para já, aos 25 anos, com os exames terminados e que, ainda por cima, “correram muito bem”, Magnus não consegue tirar o sorriso da cara. Começa a falar do bairro onde vive, mas a meio já parece estar a englobar toda a cidade de Berlim e percebe-se que talvez o seu futuro não passe pela capital alemã. “De momento, é óptimo, porque podes experimentar tudo, há sempre pessoas que estão a começar algo de novo”.

A conversa leva-nos até um pequeno restaurante, com um único funcionário. O Marafina, de um imigrante da Eritreia que faz tudo ali à frente de quem chega para comer, e na hora, é um dos exemplos de restaurantes baratos, diferentes e de comida muito apetitosa que levam Berlim a ser ideal para jovens adultos que gostam de experimentar coisas novas e não têm muito dinheiro para gastar, diz Magnus. Sentados na sala decorada em tons de vermelho e negro, falamos do Muro.

Longe de Berlim, Magnus lembra-se de ter visto, em casa dos pais, as fotografias da divisão da cidade e também do momento da queda do Muro, a 9 de Novembro de 1989. Depois que se mudou para a cidade, ele ainda identifica diferenças entre Leste e Oeste. “Nota-se em aspectos como a arquitectura, com o Leste a ser muito mais influenciado pelas grandes construções russas. E, quanto mais te afastas da antiga zona do Muro, mais notas, nas roupas e no modo de ser. É diferente”, diz.

Depois de lambermos os dedos, com as delícias do Marafina, entramos no metro e dirigimo-nos a Treptower Park. É nos limites deste parque muito procurado pelos berlinenses para passear ou relaxar que se encontra o antigo Spreepark, mas o passeio de Magnus não nos leva até lá e acabamos por não o ver.

Em vez disso, ele guia-nos até ao Sowjetisches Ehrenmal, o enorme Memorial de Guerra Soviético construído pelo arquitecto Yakov Belopolsky para lembrar os cerca de 50 mil soviéticos que morreram na Batalha de Berlim, em Abril e Maio de 1945. O memorial é também o local onde estão enterrados cerca de cinco mil dessas vítimas, e foi inaugurado quatro anos após o fim da guerra, a 8 de Maio de 1949.

Passamos pelas enormes estátuas da Mãe Rússia, segurando uma criança nos braços, pelos soldados novos e velhos, que lhe prestam homenagem ou que estão espalhados pelo terreno, como estátuas gigantes ou parecendo saltar de painéis gravados. O local, apesar das suas referências bélicas, é estranhamente calmo. “É um monumento muito bonito e eu gostava de vir para aqui estudar”, diz Magnus.

Depois, sorri de novo e explica que sabe muito sobre o monumento por causa de uma bebedeira. Ou melhor, de várias bebedeiras. Ele e os amigos têm um jogo, explica. Embarcam no Ringbahn, o Anel Ferroviário de Berlim, e cada um tem de escolher um local ao longo da linha e aprender tudo sobre ela, para explicar aos amigos. Enquanto isso, vão bebendo, bebendo sempre. Ele escolheu o memorial e, por isso, estudou-o. É por isso que agora é capaz de apontar para a estátua gigantesca de um soldado, sobre a entrada da cripta, e dizer: “Pesa 30 toneladas. Não sei como o trouxeram para aqui, foi feito no Noroeste da Alemanha”.

Seguimos a pé. Atravessamos o parque e aproximamo-nos do Spree. “Estamos a caminhar pela terra de ninguém. Isto aqui é uma torre de vigia abandonada”, diz Magnus, apontado uma espécie de bunker de cimento, feio e graffitado. É o antigo posto de comando de Schlesischer Busch, que fica no Parque Schlesischer – menos recomendável do que o anterior explica Magnus. “Se fosse antes da queda do Muro e andássemos a caminhar por aqui, provavelmente, estaríamos mortos”, avisa.

Estamos nas imediações do local onde Lukas nos levara, na marginal fluvial, mas do outro lado do rio. Vemos os edifícios da MTV e da Universal, mas também verdadeiros acampamentos sem quaisquer condições, onde mora gente. Magnus leva-nos a espreitar os bares flutuantes do canal de Flutbgraben, onde se está bem no Verão, a ver o pôr-do-sol, mas ainda não é ali que quer parar para beber uma cerveja e apreciar o final do dia. Atravessamos para Berlim Oeste. Passamos de novo junto à Oberbaumbrücke, “a ponte mais bonita de Berlim”, para Magnus.

O dia, contudo, não termina aqui. Há mais um sítio da sua Berlim que Magnus nos quer mostrar. De novo a bordo dos transportes públicos, seguimos até à estação de Kottbusser Tor e depois continuamos a pé, atravessando um bairro habitado por muitos imigrantes. Chegamos à Admiralsbrücke. Estamos, de novo, em Kreuzberg. Ali ao pé, vendem-se várias marcas de cerveja, é só comprar, levar a garrafa até à ponte e escolher um sítio para se sentar.

O sol ainda não se pôs, por isso a ponte está sossegada, mas à noite, os jovens invadem-na, transformando-a num salão de festas ao ar livre. A Berlim de Magnus termina aqui. A sua permanência na cidade não deve terminar tão cedo. “Berlim é a cidade da festa. Há muita droga e vidas menos felizes, mas há muitas coisas boas”, diz, a garrafa de cerveja a bailar-lhe nos dedos.

Guia prático

Como ir
Há voos de Lisboa e do Porto directamente para Berlim, da TAP e de companhias low-cost, por isso, o melhor, é planear a viagem com antecedência, para conseguir tarifas mais baixas. Se pensasse em viajar já no próximo fim-de-semana, por exemplo, ainda conseguia voos de ida a volta a partir de 157 euros, à saída de Lisboa, e a partir dos 221 euros, a partir do Porto.

Onde comer
Markethalle 9, Eisenbahnstrasse 42
Vá ao Markethalle 9 e, se tiver apetite para tanto, experimente massas a sanduíches, vinhos e peixe fresco, queijos, doces e sumos naturais. Pode sentar-se lá mesmo ou levar uma série de coisas boas consigo. O mercado está aberto de segunda-feira a sábado entre as 10h e as 18h. Às quintas-feiras, o horário estende-se até às 22h, com o espaço a transformar-se, a partir das 17h e até ao fecho num mercado de comida de rua.

Marafina, Wühlischstrasse 17
Identificado como uma casa de comida rápida árabe e africana, no Marafina pode comer várias delícias por menos de sete euros e quanto à bebida, faça o favor de se servir e tirar o que quer da arca refrigeradora ao pé do cozinheiro.

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