Fugas - Viagens

Sara: Quanto mais nele andamos, mais deserto ele fica

Por Joana Gorjão Henriques

Fizemos uma caminhada de 80 quilómetros em quatro dias pelo deserto do Sara em Marrocos. Acampámos, vimos as estrelas mais brilhantes de sempre e subimos ao topo das dunas de Chegaga para ver o sol nascer no dia 1 de Janeiro.

Quase 80 quilómetros de caminhada depois, a imagem de uma criança a correr no meio das dunas em direcção ao jipe que nos leva de volta ao nosso ponto de partida grava-se, inevitavelmente, com força. Com uma camisola encarnada, cabelos despenteados, não deve ter mais de cinco anos. Vem de uma tenda onde à volta estão cabras, de braços no ar, com a rapidez de quem quer que paremos a todo o custo ali e agora. O jipe conduzido pelo motorista marroquino segue caminho como se nada fosse. Fugimos-lhe das mãos.

Até passar ali um outro carro podem ser horas, quem sabe semanas. Em quatro dias de caminhada pelo deserto, cruzámo-nos com turistas em duas paragens para almoço. Tirando os turistas mais frequentes nas dunas de Chegaga, não passou por nós vivalma o resto do tempo. Pode-se andar horas e horas só a ver paisagem. Mesmo os nómadas berberes, que vivem aqui há séculos, são poucos.

Diário em cinco dias de uma travessia no deserto entre 2014 e 2015

Dia 1
28 de Dezembro de 2014
De Marraquexe vê-se o cume das montanhas do Atlas cobertas de branco. Tornam-se uma espécie de bússola do olhar: se desaparecermos entre as ruelas da medina, e ficarmos sem pontos de referência, olhar para cima situa-nos.

Iremos atravessá-las de autocarro em direcção ao deserto no dia 28. São cerca de 450 quilómetros e quase 12 horas até ao acampamento fixo de Oulad Edriss, no Sul, curva e contracurva numa estrada por onde se pensa que dois carros não passam. Nunca imaginámos aquela cor tão vermelha de algumas montanhas, depois verde e castanho, o branco da neve a subir pelo cume, as casas laranja a confundirem-se com a paisagem como se estivessem encrustradas nela. Passamos o Vale de Draa e em Ighrem N’Ougdal paramos para um café que serve para admirar a paisagem. Se não víssemos a porta laranja no meio de paredes vermelhas que dá para uma mesquita poderíamos estar numa paisagem norte-europeia. Continuamos na estrada, não vamos perder muito tempo, nem para comer a tajine de frango à hora de almoço. 

Mohamed Idali, 45 anos, guia de montanha e de deserto há 20 anos, aponta para o que já foi cenário de rodagem de filmes como Lawrence da Arábia ou Babel: o autocarro atravessa a estrada em Ouarzazate sem parar, só temos tempo de fotografar o “estúdio” Atlas ao longe.

A última paragem no “mundo” antes do deserto é em Zagora para nos abastecermos de água e frutos secos e bolachas e chocolates e o que a mercearia tiver. A vida em Marrocos faz-se na rua e entrar no deserto vai ser deixar de a ver.

Quando chegamos ao acampamento fixo, Rose des Sables, já é de noite. Um outro grupo além do nosso está na tenda sala-de-estar. Houssain, o cozinheiro, prepara o chá de menta, como sempre que chegamos a um acampamento. Uma versão dos nossos ovos escalfados com ervilhas é servida para jantar, de sobremesa temos fruta, clementinas e laranjas dulcíssimas. Mas o frio e o cansaço são tantos que mal o jantar acaba se torna hora de enfiar no saco de cama. Mulheres para uma tenda, homens para outras — aqui não há opção de ficar em tendas individuais. Dentro das “tendas” com paredes cabem apenas as camas, é preciso fazer ginástica para andar entre as malas. A porta é um dos tapetes marroquinos. Fechemo-la porque está mesmo frio.

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