Quase 80 quilómetros de caminhada depois, a imagem de uma criança a correr no meio das dunas em direcção ao jipe que nos leva de volta ao nosso ponto de partida grava-se, inevitavelmente, com força. Com uma camisola encarnada, cabelos despenteados, não deve ter mais de cinco anos. Vem de uma tenda onde à volta estão cabras, de braços no ar, com a rapidez de quem quer que paremos a todo o custo ali e agora. O jipe conduzido pelo motorista marroquino segue caminho como se nada fosse. Fugimos-lhe das mãos.
Até passar ali um outro carro podem ser horas, quem sabe semanas. Em quatro dias de caminhada pelo deserto, cruzámo-nos com turistas em duas paragens para almoço. Tirando os turistas mais frequentes nas dunas de Chegaga, não passou por nós vivalma o resto do tempo. Pode-se andar horas e horas só a ver paisagem. Mesmo os nómadas berberes, que vivem aqui há séculos, são poucos.
Diário em cinco dias de uma travessia no deserto entre 2014 e 2015
Dia 1
28 de Dezembro de 2014
De Marraquexe vê-se o cume das montanhas do Atlas cobertas de branco. Tornam-se uma espécie de bússola do olhar: se desaparecermos entre as ruelas da medina, e ficarmos sem pontos de referência, olhar para cima situa-nos.
Iremos atravessá-las de autocarro em direcção ao deserto no dia 28. São cerca de 450 quilómetros e quase 12 horas até ao acampamento fixo de Oulad Edriss, no Sul, curva e contracurva numa estrada por onde se pensa que dois carros não passam. Nunca imaginámos aquela cor tão vermelha de algumas montanhas, depois verde e castanho, o branco da neve a subir pelo cume, as casas laranja a confundirem-se com a paisagem como se estivessem encrustradas nela. Passamos o Vale de Draa e em Ighrem N’Ougdal paramos para um café que serve para admirar a paisagem. Se não víssemos a porta laranja no meio de paredes vermelhas que dá para uma mesquita poderíamos estar numa paisagem norte-europeia. Continuamos na estrada, não vamos perder muito tempo, nem para comer a tajine de frango à hora de almoço.
Mohamed Idali, 45 anos, guia de montanha e de deserto há 20 anos, aponta para o que já foi cenário de rodagem de filmes como Lawrence da Arábia ou Babel: o autocarro atravessa a estrada em Ouarzazate sem parar, só temos tempo de fotografar o “estúdio” Atlas ao longe.
A última paragem no “mundo” antes do deserto é em Zagora para nos abastecermos de água e frutos secos e bolachas e chocolates e o que a mercearia tiver. A vida em Marrocos faz-se na rua e entrar no deserto vai ser deixar de a ver.
Quando chegamos ao acampamento fixo, Rose des Sables, já é de noite. Um outro grupo além do nosso está na tenda sala-de-estar. Houssain, o cozinheiro, prepara o chá de menta, como sempre que chegamos a um acampamento. Uma versão dos nossos ovos escalfados com ervilhas é servida para jantar, de sobremesa temos fruta, clementinas e laranjas dulcíssimas. Mas o frio e o cansaço são tantos que mal o jantar acaba se torna hora de enfiar no saco de cama. Mulheres para uma tenda, homens para outras — aqui não há opção de ficar em tendas individuais. Dentro das “tendas” com paredes cabem apenas as camas, é preciso fazer ginástica para andar entre as malas. A porta é um dos tapetes marroquinos. Fechemo-la porque está mesmo frio.