Fugas - Viagens

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O encanto açoriano sobre rodas

“Fique descansado que os Açores nunca serão o Algarve, Maiorca ou a Madeira. É mais fácil a natureza acabar com esta terra do que o próprio turismo.” Palavra de empregado de hotel.

O canto de Porto Pim

Dizer que este não é nem nunca será um destino de praia não é o mesmo que dizer que não há praias. Bem pelo contrário. Praias de areia grossa, preta, areais pequenos, escondidos, são vários os locais tão improváveis quanto belos. A Praia do Almoxarife, uma das maiores e com melhor acessibilidade, a poucos minutos da cidade Horta; a praia da Conceição e a incontornável praia de Porto Pim, ambas na capital; a praia da Fajã, na costa norte da ilha, em que o preto da areia contrasta com o verde da vegetação. Há também inúmeras piscinas naturais formadas por rochas vulcânicas (Castelo Branco ou Varadouro) e ainda pequenos portos que convidam a um mergulho, tais como Porto do Comprido, o Porto da Eira e o Porto da Feteira. Ou uma “simples” poça. A Poça da Rainha, por exemplo, na freguesia da Feteira, logo à saída da Horta. Um pequeno espaço de rocha basáltica, recentemente melhorado com solário e acesso directo ao mar.

- Está em casa, meio adoentado – oiço uma faialense responder, corpo na água, biquíni fora de época, quando um casal amigo lhe pergunta pelo marido.

- Eu nunca fico doente, não há nada que um mergulho nestas águas não curem – conclui.

Poucos metros ao lado, dois irmãos, com sete e doze anos, aproveitam as férias da escola e o improvável dia de sol para pescar.

- Queres experimentar? – perguntam-me.

- Nunca pesquei.

- É fácil. São apenas taínhas minúsculas. O meu avô caçava baleias.

Um curto diálogo numa viagem de poucas falas, mini road trip com mais estrada do que pessoas, se bem que estas estejam sempre presentes. Estão no Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio; estão nas Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão; estão na Mulher de Porto Pim, de António Tabucchi. Numa ilha como esta, com 172,43 km², 21 quilómetros de comprimento e 14 quilómetros de largura e apenas dois dias à disposição, nada como recorrer à literatura para arrepiar caminho.

É sobretudo a Mulher de Porto Pim quem nos guia. Um livro de difícil catalogação, entre o conto e a crónica, uma espécie de diário de viagens errante, metafísico, em que a realidade vive lado a lado com a ficção. Cerca de cem páginas com cheiro a baleia e atravessadas por uma beleza, uma força e uma solidão que retratam um tempo que já não existe — o livro foi editado pela primeira vez em 1983 — mas que ainda se sente. Eis um pequeno excerto: “O meu pai era baleeiro, como pai dele tinha sido, mas numa certa época do ano, quando as baleias não passam, dedicava-se à pesca da moreia, e nós íamos com ele, e a nossa mãe também. Agora isso já não se usa, mas quando eu era garoto praticava-se um rito que fazia parte da pesca. As moreias pescam-se de noite, quando a lua está na fase crescente, e para chamá-las usava-se uma canção que não tinha palavras. Era um canto, uma melodia, a princípio baixa e lânguida e depois aguda, nunca mais ouvi um canto com tamanha mágoa, parecia que vinha do fundo do mar ou de almas perdidas na noite, era um canto tão antigo como as nossas ilhas; agora já ninguém o conhece, perdeu-se, e talvez seja melhor assim, porque continha uma maldição, ou um destino, como que uma magia. O meu pai saía com o barco, era de noite, movia os remos devagar, a prumo, para não fazer ruído, e nós, eu, os meus irmãos e a minha mãe, sentávamo-nos na falésia e começávamos a entoar o canto.”

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