Fugas - Viagens

  • Da Mole Antonelliana, projectada como sinagoga, os Alpes parecem abraçar a cidade.
    Da Mole Antonelliana, projectada como sinagoga, os Alpes parecem abraçar a cidade. Reuters
  • Reuters
  • Rute Barbedo
    Rute Barbedo
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    Rute Barbedo
  • Rute Barbedo
    Rute Barbedo
  • Rute Barbedo
    Rute Barbedo
  • Rute Barbedo.  Cavallerizza Reale
    Rute Barbedo. Cavallerizza Reale
  • Rute Barbedo. Murazzi
    Rute Barbedo. Murazzi
  • Rute Barbedo.
    Rute Barbedo.
  • Rute Barbedo. Museu do Cinema
    Rute Barbedo. Museu do Cinema
  • Rute Barbedo.
    Rute Barbedo.

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Turim, a cidade invisível

Nos tempos que correm, explorar Turim num Fiat Cinquecento é o mais honroso que podemos fazer à mítica marca que abandonou a Itália no ano passado, depois de 115 anos no país. Nele, cirandamos pela Turim de luzes acesas, onde poucos parecem dormir. A sensação é de que a gigante Fábrica Italiana Automobilística de Turim (FIAT), na zona do Lingotto, se mantém parte do ecossistema e que todos os funcionários terão saído à rua para celebrar a vida-depois-de-picar-o-ponto. Olga dá as coordenadas, Enrico traça as rugas de cada bairro periférico e Roberto conduz. “Se fôssemos de táxi, o nome dele seria Guido. Em Itália, todos os taxistas são Guido.” (Guido é nome próprio mas também a primeira pessoa do verbo guiar, em italiano) A gargalhada fácil faz abanar o Cinquecento. 

Olhos na rua. À nossa esquerda, uma escola primária convertida em centro cultural e social. Mais à frente, a casa El Paso, uma antiga creche abandonada que se tornou há décadas, por ocupação popular, a meca dos concertos underground de Turim. Dois quarteirões adiante, o Spazio 211, um ex-centro (adormecido) de actividades ocupacionais para crianças e idosos que, com “a pressão da juventude para fazer música e dar concertos”, como conta o director, Andrea, se transformou num “pulmão da cultura turinense”. “E ali é a sede da Blackout!”, pulsa Enrico, entusiasmado com a rádio independente no ar desde 1992 e oxigenada por “ideais revolucionários”. Quatro histórias de reinvenção popular — sobre espaços que morriam desligados da comunidade — em meia hora de percurso à velocidade de um Cinquecento. “Tudo isto porque rodamos a periferia”, suspeita-se. Resposta: “Ah si? Poi andiamo al centro!” 

Estávamos nos pulmões e Roberto acelera para o coração da cidade. À margem do rio e da lei, no centro de Turim, o passeio é tranquilo e silencioso. No tempo em que o Pó era comercialmente navegável, era junto a estas docas que se guardavam mercadorias. Mais tarde, os armazéns foram transformados em bares e espaços culturais, que traziam ebulição à noite de Turim. “Em 2013, os 20 ou 30 espaços que existiam deste lado do Pó foram obrigados a fechar portas. Todos. Também quiseram [agentes policiais] fazer o mesmo ao nosso espaço, mas não deixámos. Éramos centenas de pessoas com máscaras de Vendetta aqui à porta. Cortámos os ferros e voltámos a entrar. O CSA nunca deixou de ser nosso.” Quem relata a história é Fabrizio Perottino, 38 anos, os últimos 18 passados no CSA Murazzi, um centro social de inspiração anarquista a conviver com a lei e com os habitantes de Turim há mais de 25 anos. 

“Sentem-se”, convida Fabrizio, improvisando uma esplanada com três cadeiras de plástico. (Não, não é um tipo de ar feroz com tatuagens de Lucifer nos braços. É franzino e pálido; bebe uma água sem gás.) Debaixo do olho impotente da polícia local, que vai “vigiando” a zona de candeeiros bem acordados, conta-nos que o CSA começou por ser uma casa ocupada onde as pessoas faziam música, discutiam política, delineavam caminhos. “Chamava-se Collectivo Spazio Metropolitani e era um lugar fora da lógica do mercado, sem dinheiro envolvido. Ainda hoje é assim: aqui todos são bem-vindos e são todos voluntários. Não há cá buotta fuori[seguranças], partidos ou instituições.” O CSA tem as portas abertas, pinturas fortes nas paredes, um palco para onde se arrastam as luzes do concerto de logo à noite. É um dos espaços de Turim onde o café é (bom e) mais barato, por isso as pessoas vão chegando e montando as suas próprias esplanadas para olhar o rio. Os concertos vão do reggae ao punk, passando pela música electrónica. Fabrizio é um daqueles tipos que já passou por muito, atento às mudanças de um lugar, por isso pedimos-lhe que nos explique de onde vem o fogo que arde em Turim. “Quando era puto, isto era apenas a Fiat. Não havia nada. Era este o preconceito que existia: o de um lugar triste sem nada para fazer.” Como “a cidade estaria morta se fosse apenas o dormitório de uma fábrica onde trabalhavam 300 mil pessoas”, algumas minorias decidiram reagir, tornando Turim num “ponto activo de Itália, com uma forte tradição de lutas, greves e resistência contra o fascismo” e uma marcada apetência para alimentar a cultura underground como espaço de expressão dos habitantes, sem castrações.

É então que Turim deixa de ser invisível. Basta-nos ler as paredes, uma a uma, para perceber a vontade latente de criar. (Há quem não acerte no alvo e profane igrejas, como a Basílica de Superga, situada no topo de uma das muitas colinas arborizadas que rodeiam Turim, cujos pilares de mármore são muro de inscrições a caneta). Deixamos o rio às escuras para ler mais. Uma das bibliotecas da Universidade — que fica a escassos metros da Mole Antonelliana, ex-líbris arquitectónico onde vive o Museu Nacional do Cinema — foi recentemente ocupada pelos estudantes. Na esquina seguinte, funciona a Cavallerizza Reale — um espaço semidevoluto de 40 mil metros quadrados que foi ocupado por artistas, desempregados, juristas, cidadãos (o movimento Assemblea Cavallerizza 14:45) focados em devolver o espaço à cidade com uma programação cultural regular. Na rua paralela, junto à distinta Mole Antonelliana, uma massa de gente senta-se no chão para ver cinema ao ar livre. Tudo isto acontece porque é Turim.

Afinal, não são apenas as periferias os centros de acção dos turinenses indignados — elas também souberam migrar para o centro, como fez Machno. Aos 39 anos, já com menos guelras para as cenas do punk hardcore e do garage, que lhe estão no sangue, decidiu deixar “um squat muito importante para a música underground em Turim, mais afastado do centro”, para abrir um bar onde copos de cerveja coabitam pacatamente com taças de leite ao pequeno-almoço. Sentamo-nos à mesa do Blah Blah com uma tela branca nas costas para Machno explicar que “esta foi a primeira sala de cinema em Itália e a segunda no mundo; foi o segundo lugar a projectar o primeiro filme dos irmãos Lumière”. Perguntamos-lhe o que faz um punk de espírito num lugar de tostas de salmão, cappuccini e clássicos do cinema à segunda-feira. “Nos anos de 1980 e 1990, foi a explosão do movimento underground e Turim era a meca do punk hardcore. Eu estava lá, sim, mas cansei-me da polícia, de ter de fechar a porta. É verdade que é mais difícil ter um bar, pagar taxas, não poder fumar no meu próprio espaço, não poder vender álcool a partir das três da manhã. Em Itália, é mais fácil viver na ilegalidade. Mas eu preferi ter um lugar onde se fizesse música para todos.” 

Dolce far niente? O tanas.

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