Fugas - Viagens

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Todos têm o direito de não ler este artigo

Num palco de boémios, não poderia faltar um dos mais famosos da Boémia. Vaclav Havel, antigo presidente da República Checa, falecido em 2011, recebeu e aceitou o convite para estar presente na cerimónia da inauguração, com direito a escutar os grandes êxitos de Frank Zappa, tocados por uma banda militar, mas sem disponibilidade para apreciar a maior parte dos eventos que marcaram as festividades, como um lançamento de balões organizado pelo clube de fãs (criado pelo próprio Saulius Paukstys), uma semana de tempo de antena numa rádio local para uma emissão especial dedicada ao cantor, incluindo dúzias de excertos filosóficos da sua autoria, e até um clube de cartas de amor para congregar todos os corações solitários de Vílnius.  

Frank Zappa nunca pôs os pés em Užupis — ao contrário, por exemplo, de Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano e um dos cidadãos honorários da república — e provavelmente pereceu sem ter a percepção do seu significado místico para os habitantes do bairro: ele permanece como o símbolo do fim do comunismo, firme num lugar que ainda há bem pouco tempo teria de ser ocupado pelos ícones de Lenine ou Marx.

“Todos têm o direito de ser amados, mas não obrigatoriamente”.

Perante esta vitória, os habitantes de Užupis, determinados em cortar com o passado, decidiram dar mais um passo e declarar independência do governo central, com o argumento de que, mais do que nunca, era necessário proteger o bairro da negligência e da deterioração e reconquistando, ao mesmo tempo, o seu sentido de individualidade, esmagado ao longo de mais de 50 anos de despotismo soviético.

“Todos têm o direito de serem felizes”.

Mas não só.

“Todos têm o direito de serem infelizes”.

O receio da colonização

Como qualquer bairro de Vílnius, Užupis tem o seu próprio estilo de vida. Há, entre aqueles que há vinte anos se tentaram integrar, algumas razões de queixa perante a forma como foram recebidos pela comunidade local — como colonizadores, como um dia ironizou, o presidente Romas Lileikis — mas hoje, passados estes anos todos, são muito menos os que manifestam arrependimento face à mudança.

“Todos têm o direito de amar” e, também, diz a constituição, “todos têm o direito de não ser amados, mas não necessariamente”.

Ignorado durante décadas e privado de quaisquer apoios, tanto governamentais como privados, o bairro tornou-se cenário privilegiado de uma minoria desfavorecida, sem capacidade para navegar nas ondas de um capitalismo acelerado pela proximidade à Europa e pelo estatuto de Património Mundial da UNESCO conferido à parte antiga da capital, com consequências previsíveis no aumento dos preços de aluguer das casas. Se, para uns, viver em Užupis constituía (e ainda constitui) um prazer, para outros, menos ou nada vocacionados para as artes, não era mais do que uma necessidade, um refúgio barato que lhes permitia chegar ao fim do mês com mais algumas litas no bolso. 

“Todos podem partilhar o que possuem” mas “ninguém pode partilhar o que não possui”.

Enquanto Vílnius ia lavando a cara, graças à cosmética patrocinada pela Europa pela qual se sentia fatalmente atraída, Užupis permanecia como uma espécie de filha deserdada, teimosamente rural e adormecida, mas beneficiando da dinâmica imposta pelos seus escassos habitantes, de tal forma empreendedores que a transformaram num espaço pleno de criatividade, de vida, de cor e de vitalidade, atraindo um cada vez maior número de espíritos livres.

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