Fugas - Viagens

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Todos têm o direito de não ler este artigo

Cansados de um abandono que ameaçava prolongar-se eternamente, os habitantes de Užupis terão visto em Frank Zappa e na sua estátua um prenúncio de futuro e, atraídos por essa visão, como se de um santo padroeiro se tratasse, decidiram avançar, corajosos e estimulados pela posição manifestada pela Lituânia face à União Soviética, para um processo de independência que se consumou a 1 de Abril, já lá vão 17 anos, apenas uns meses após expressarem o seu descontentamento num acto aparentemente sem grande significado.

Estávamos em Dezembro de 1997 e, a exemplo do que sucedera em anos anteriores, os políticos da capital lituana não presentearam Užupis com uma árvore de Natal; desiludidos, os habitantes do bairro trataram de arranjar e de decorar a sua própria árvore (a despeito de Užupis se encontrar a milhas de distância do conservadorismo católico perceptível em todo o país), considerada como “do povo e para o povo” e cimentando os alicerces do que estava para ser anunciado pouco depois: “Vílnius e a Lituânia olham para Užupis como outros olham para as suas colónias. Fazem tudo em Vílnius e nada em Užupis; por isso, declaramos Užupis uma república independente.”  

Uma bandeira por estação

“Todos têm o direito de ser independentes”, da mesma forma que — reza ainda a Constituição — «todos têm o direito de ter qualquer nacionalidade”.

O susto inicial dos turistas que se vão aglomerando ao longo das ruas dá lugar, uma vez assimilado o motivo dos sons festivos que ecoam no ar, a um sentimento de solidariedade. A poucos metros, já na sombra, consigo perscrutar as placas com a constituição de Užupis. “Todos têm o direito a ter dúvidas mas isso não é uma obrigação” — e lembro-me desta como de outras duas: “Todos têm o direito de compreender tudo” e “todos têm o direito de nada compreender”.

Os motards percorrem as ruas e dos escapes das suas máquinas sai um rugido que quebra o silêncio; as bandeiras esvoaçam no ar, uma enorme mão branca sobre um fundo azul com um buraco redondo (simboliza as bolhas dos trabalhadores) como uma lua cheia projecta-se contra as casas com sinais de decadência. Užupis, um microestado que nenhum país reconhece mas com embaixadas espalhadas um pouco por todo o mundo — da mesma forma que algumas estão instaladas no bairro de Vílnius — tem quatro bandeiras, uma para cada estação (azul no Inverno, verde na Primavera, amarela no Verão e vermelha no Outono), e todos os anos, a 1 de Abril, comemora a sua independência.

“Todos têm o direito de celebrar ou não o seu aniversário”.

Seguindo as motos, em cortejo, alguns carros, um ou outro transportando embaixadores e outras figuras públicas, mais centenas de anónimos ávidos de se juntarem às exaltações e a banda da música que enche a atmosfera de vida — a felicidade parece ter contagiado toda a gente na pequena república. Mas o dia não se esgota sem o lançamento de peixes às águas do Vilnia e sem um concerto mal a noite faz a sua aparição.

Este é apenas um dos muitos acontecimentos que marcam a vida de Užupis : o Ano Novo é festejado a 20 de Março, coincidindo com o equinócio da Primavera, uma data em que os residentes são convidados a purificar o corpo, queimando os seus velhos pecados numa fogueira e dando um mergulho simbólico nas águas do Vilnia; mais para a frente, no segundo dia da Páscoa, celebra-se o Dia das Toalhas Brancas, uma cerimónia que tem lugar na esplanada do Café Užupio e que consta de uma troca de cumprimentos e de partilha da comida que restou da habitual refeição da Páscoa. Com sol ou com neve, este é um dos dias mais aguardados pelos habitantes de Užupis e no qual manifestam, como talvez em nenhum outro, o seu forte sentido comunitário.

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