“Todos têm o direito de não ter direitos”.
Observando as cópias dos 41 artigos da Constituição da República de Užupis, traduzida em diferentes línguas e afixada nas paredes da Paupio Gatve, sinto uma quase irresistível vontade de lhe acrescentar, sem que ninguém testemunhe o meu acto de vandalismo, um outro no final da extensa lista.
Todos têm o direito de não ler o artigo que vou escrever para a Fugas sobre Užupis.
Mas por ali fico, de mãos nos bolsos e o olhar plantado, tentando memorizar alguns dos artigos.
“Um cão tem o direito de ser um cão”; “Todos têm o direito de amar e de cuidar de um gato”; “Todos têm o direito de cuidar de um cão até que um deles morra”; “Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudar em tempos de necessidade”.
A constituição de Užupis foi escrita numa noite de Verão, em 1998, pelos cidadãos locais Romas Lileikis, actual presidente da república, e Tomas Cepaitis, ministro dos negócios estrangeiros. Em rigor, ninguém sabe qual dos dois redigiu este ou aquele artigo; do domínio público é a paixão do primeiro por cães e do segundo por gatos — e mais importante do que descobrir o autor, é a visão progressista dos direitos dos animais, como foi reconhecido, em 2002, em Užupis, durante uma cerimónia oficial, pelo então embaixador norte-americano na Lituânia, John Tefft, discursando com Louie, o seu cão, ao colo.
Também conhecida por Constituição das Antigas Cidades (Medinas), a constituição rapidamente se tornou popular no bairro e para lá das suas fronteiras. A primeira placa, em metal, foi colocada numa parede no Café Užupio mas outras réplicas rapidamente preencheram uma parte de um muro da Paupio Gatve, primeiro em lituano e em inglês, mais tarde em francês e, desde 2002, nas línguas de Vílnius — russo, polaco, bielorrusso, georgiano e iídiche. A partir de 2009, todos os anos é afixada uma nova e, para Julho próximo, está prevista uma em português.
Fixo o olhar num outro artigo e decido respeitá-lo.
“Todos têm o direito de caminhar lentamente”.
Do outro lado do rio
Percorro a curta distância que me separa da mais emblemática das pontes que cruzam as águas do Vilnia (a origem da toponímia da capital do país báltico) e que marca a entrada no liliputiano território (0,60 km2) de Užupis — em lituano significa “do outro lado do rio”. Escutando o marulho da corrente, mergulho na história que antecede a sua autoproclamada independência, a 1 de Abril de 1998, nos seus episódios turbulentos, tão em contraste com a quietude que emana nos dias de hoje.
As primeiras pontes sobre o Vilnia foram erguidas no século XVI, num tempo em que o bairro era habitado, na sua maior parte por judeus, comunidade que praticamente desapareceu com o Holocausto — e anos mais tarde, durante a ocupação soviética, nem o antigo cemitério foi poupado à destruição.
“Todos têm o direito a ter fé”.
As casas, deixadas ao abandono, rapidamente foram ocupadas por elementos marginais à sociedade, homens e mulheres sem um tecto e prostitutas dividindo uma atmosfera tão diferente da que conheceram, enquanto residentes e em diferentes períodos, Felix Dzerzhinsky, polaco fundador da Cheka, a primeira polícia secreta da União Soviética, vulgarmente conhecido por Felix de Ferro, e Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, pintor, compositor e escritor considerado um dos pioneiros da arte abstracta na Europa.