Há um adulto que brinca com uma criança, atira-a ao ar. Parece ter dois anos. Há outra criança – andaria pelos oito? – que se aninha junto a este adulto. Podem ter formado uma família. Há um casal de pernas entrelaçadas. Há um corpo estirado, num esgar de sofrimento. Há um homem que parece chorar, joelhos no peito, cabeça enfiada. Há pessoas que levam os braços ao céu, o que coincide com o desespero descrito por Plínio. Há os que se recolhem sobre si, numa posição fetal. Há outros que não fazem nada.
A descoberta destes corpos é posterior à descoberta de Pompeia e consequência de uma fabulosa solução de Giuseppe Fiorelli. Este arqueólogo liderou o trabalho de escavação entre 1860 e 1875, elaborou um primeiro mapa da cidade, que ainda hoje é seguido, experimentou um sistema de moldes de gesso que preenche o espaço oco de corpos e objectos encontrados. É uma forma de dar espessura e forma ao que existia apenas de modo fragmentado, ao que era parte de um todo. Resulta uma inteireza tosca, cor de cinza petrificada, que permite encontrar uma cidade – e os seus habitantes – nos instantes que precederam o fim.
A comoção que sinto quando vejo aqueles corpos é imediata. Penso que resulta de os seus gestos serem gestos que reconheço, que todos reconhecemos. De ser evidente neles o sofrimento e ao mesmo tempo a banalidade. Colocamo-nos no lugar daquela criança que é atirada ao ar pelo pai ou pela mãe, ou na outra, mais crescida, que junto às pernas procura protecção.
Há um laço que se estabelece e que tem escrito empatia.
Depois há o cataclismo, a aflição. Um som e uma temperatura a interromper este correr de vida normal. Um calor de 400 graus. O ribombar do vulcão. Plínio, que estava na baía de Nápoles, fornece os elementos: “O mar parecia engolido pelo seu próprio remoinho, como se o terramoto o afugentasse e, em terra, uma nuvem preta e assustadora, rasgada pelo relampejar do fogo, fendia-se em longas tiras de chamas, parecidas com raios, se possível ainda mais impressionantes. [...] Finalmente, a fuligem dispersou-se e dissipou-se em fumo e nuvens. Amanheceu, e quando o sol brilhou era tão pálido como durante um eclipse. Aos nossos olhos, ainda hesitantes, tudo parecia transformado e coberto por um manto de cinzas como se fosse neve.”
Pompeia virou cidade soterrada, da qual se perdeu a memória. Foi descoberta acidentalmente quinze séculos depois. E as escavações começaram, e com elas o assombro.
Volto ao princípio da viagem, à Pompeia que hoje se calcorreia. Antes mesmo de transpor a Porta Marítima, tenho a impressão de ser transplantada para um dia banal de um tempo longínquo. As coordenadas da cidade são as que reconhecemos como nossas. A organização do espaço e os hábitos quotidianos manifestam a proximidade, propiciam a identificação. Aí ficam as termas, de decoração majestosa. Uma primeira forma de spa, frequentada por todos (excepto escravos), habitualmente pelas quatro da tarde. No frigidarium (sala fria), as paredes são de estuque, imitam o mármore. Noutra sala, há uma gruta artificial, um mosaico com pasta de vidro que reflecte a água e jogos de luz. No vestuário há frescos eróticos, explícitos, que aludem aos serviços aí prestados. Não diferem dos frescos do lupanar, que fica umas quantas ruas mais à frente.