Streymoy. Eysturoy. Vágar. Suðuroy. Sandoy. Borðoy. Viðoy. Kunoy. Kalsoy.
- Tripulação, preparar para aterrar.
A voz do comandante interrompe a minha leitura e os nomes, com todo o seu exotismo e até agora parecendo-me tão distantes, começam a ganhar forma, um corpo, aproximam-se, se bem que permanecendo envoltos numa aura de mistério.
Svínoy. Fugloy. Nólsoy. Mykines. Skúvoy. Hestur. Stóra Dimun. Koltur. Lítla Dímun.
Desvio o olhar para a janela e a moldura recorta uma falésia que se debruça imponente sobre um mar que se agita, vagas sucessivas e pouco dóceis quebrando-se contra a base, enquanto o topo, coberto de um verde viçoso, como um campo de futebol ondulante, vive na sua quietude solitária. Mais para lá, com dificuldade, avisto um pequeno rebanho. O avião ainda não aterrou mas fico com a sensação de já ter visto tudo das Feroe: um mar castigador, penhascos que caem a pique (dos mais altos da Europa, alguns deles com 750 metros), a natureza em toda a sua pujança e algumas ovelhas de um total de 70 mil - mais 20 mil do que o número de habitantes de um arquipélago que me é familiar apenas pela sua modesta selecção de futebol.
A manhã pinta-se de uma luz diáfana e o horizonte revela uma linha clara e bem definida quando, uma vez chegado a Tórshavn, me sinto trespassado pela angústia de absorver a personalidade que está para lá da aparência. A cidade está virada para o mar, com os seus iates e pequenos barcos levemente agitados pela ondulação, tantos quando comparados com tão escasso número de residentes; e, mais para diante, os cargueiros ora são carregados ou descarregados, oferecendo vida a uma capital tão pacata, popular, entre outras coisas, por ser a mais pequena do mundo.
Tórshavn abriga a mais numerosa comunidade das Ilhas Faroé, pouco mais de 16 mil almas (há 200 anos não eram mais de 600), mas a atmosfera que se respira, caminhando junto ao mar ou pelas suas ruas charmosas, não tarda em produzir no viandante um sentimento de serenidade.
- Nada mau. Há quem nunca tenha ouvido falar das Ilhas Feroe, pelo menos tu sabes que existem e que temos uma selecção de futebol. Tens acompanhado os últimos resultados? Sabes que ainda há bem pouco tempo vencemos a Grécia pela segunda vez?
Súsanna Sørensen, com o seu cabelo curto e escuro, sentada à sua secretária, no posto de turismo, fita-me com uma expressão interrogativa, na expectativa de ver traduzido em palavras o meu sorriso irónico que ela não demora a perceber — será que todos ganham à Grécia por estes dias?
- Sim, o futebol pode não ter grande expressão nas Ilhas Feroe e as vitórias são ainda mais raras do que as aparições do sol. Mas essa fragilidade não nos impede de sentir um enorme orgulho pela selecção. Na verdade, somos um povo orgulhoso, um povo que sobreviveu perante a adversidade durante muitos e muitos anos, uma realidade que contribuiu decisivamente para a formação do nosso carácter.
O legado viking
Os primeiros colonizadores, noruegueses, na sua grande maioria agricultores e pastores, chegaram às inabitadas ilhas no início do século IX. Esta é a tese que mais agrada aos habitantes locais mas há quem a recuse com o argumento de que as Feroe, erguendo-se há 30 milhões de anos em águas atlânticas, terão servido de refúgio primeiro a monges irlandeses nos anos 500 e, um pouco mais tarde, a eremitas escoceses, uns e outros formando pequenas comunidades em busca de um lugar isolado e capaz de preencher a sua quietude espiritual.
Verdade ou lenda, sabe-se mais da história do arquipélago desde os tempos em que os vikings eram reis dos mares: a administração das ilhas esteve sempre nas mãos de um grupo parlamentar designado Ting mas a rotina foi quebrada em 1380, quando aquele se transformou numa corte real e o poder legislativo passou a ser denominado Logting. Menos de 20 anos mais tarde, em 1397, perante a fusão política entre a Noruega, a Suécia e a Dinamarca, denominada União de Kalmar, as ilhas tornaram-se uma província dinamarquesa.
Já no século XIX, a Dinamarca exacerbou ainda mais o seu domínio e, em 1849, o Rigsdag (parlamento) incorporou o arquipélago no mapa do país, uma situação que se manteve até 23 de Março de 1948 (pelo meio, durante a II Guerra Mundial, as ilhas foram ocupadas pelo exército britânico como medida para assegurar as estratégicas rotas marítimas do Atlântico Norte e prevenir uma eventual ocupação alemã), dia em que as Feroe passaram a beneficiar de um outro estatuto. Aquele que era um condado da Dinamarca, tornou-se, a partir dessa data, num governo autónomo, embora dependente do reino da Dinamarca.
- Metade da população deseja a independência mas a outra metade pretende manter-se fiel ao reino da Dinamarca, assegura Súsanna Sørensen com um sorriso que confirma não ser este um assunto verdadeiramente pertinente para as gentes das ilhas.
Por agora, a ajuda dinamarquesa é bem-vinda mas as oito licenças concedidas em anos recentes para perfurações exploratórias de petróleo e gás no sudoeste no arquipélago podem, caso sejam descobertos jazigos, exacerbar um sentimento independentista e tornar as Feroe ricas e menos dependentes da sua (quase) única fonte de rendimento — a pesca.
Uma tradição polémica
Na altura em que a Dinamarca aderiu à Comunidade Económica Europeia — agora União Europeia —, em 1973, as Feroe recusaram a integração, fundamentalmente por discordarem da polémica questão relativa aos direitos de pesca e como forma de manterem essa verdadeira fortaleza que consiste numa zona económica exclusiva de 200 milhas marítimas (definida em 1977). Com uma frota altamente modernizada, a actividade, já industrializada em meados do século passado, representa 95% do total das exportações anuais das ilhas.
Para os residentes, a dieta não é à base de peixe, de salmões que crescem em arcos olímpicos nas águas dos fiordes ou de arinca, de bacalhau ou de dourada, de arenque ou tamboril — mas da carne de baleia-piloto, um cetáceo com cinco a oito metros de comprimento que é caçado nas ilhas há séculos (os primeiros registos datam de finais do século XVI) e destinado apenas a consumo próprio (nunca para fins comerciais), após uma distribuição equitativa entre todos os ilhéus — num arquipélago onde a entreajuda é constante, os hospitais e os idosos são os primeiros a ser servidos.
Todos os anos, pelo Verão, esta caçada, regulada pelas autoridades locais mas não reconhecida pela Comissão Baleeira Internacional, mobiliza a população — mal avistam um grupo de baleias, os caçadores participantes formam um semicírculo com barcos pouco maiores do que as baleias e, tão lentos como silenciosos, conduzem os cetáceos na direcção da baía onde são abatidos, tingindo as águas de sangue (a lança e o arpão foram banidos para reduzir o sofrimento).
Alguns grupos defensores dos direitos dos animais definem a grindadráp — como é designada a caçada na língua local — como cruel mas aos detractores deste massacre organizado respondem os locais que se trata de um ritual ancestral, focado no reforço do espírito comunitário e que garante não mais do que 25% do consumo anual de carne de que carece a população, de forma alguma comparável ao que se verifica, por exemplo, no Japão. E a todos aqueles que, mesmo assim, teimam em criticar este sacrifício das baleias, os feroeses argumentam com números: não são caçados, nas suas águas, mais de um milhar de cetáceos, o que representa 1% da população global do Atlântico Norte.
A magia da natureza
Na última década do século passado, após anos de despesismo por parte do governo, as ilhas enfrentaram um período de recessão económica, o desemprego alcançou os 26% e muitos dos habitantes, tão sentimentalmente ligados às suas origens, partiram para a Dinamarca ou outros países nórdicos alimentados da esperança de uma vida melhor. No espaço de apenas dez anos, a economia passou a registar um comportamento positivo, a taxa de desemprego baixou drasticamente e a população residente voltou a aumentar (há 200 anos não ultrapassava os cinco mil) — e hoje, perante a qualidade de vida que lhes é proporcionada, ninguém quer partir para outros destinos.
- Quando olho esta fotografia não consigo conter as lágrimas. Faltam-me as palavras se me pedem para descrever a minha infância nas Feroe, feita de momentos tão simples e, ao mesmo tempo, tão intensos.
Johanna Majken Poulsen, de regresso por uns dias às ilhas, planta o olhar numa imagem com mais de 30 anos, como pano de fundo uma estrada de alcatrão que rasga um cenário verdejante, um riacho que corre apressado para o mar, mais para trás ainda, sob uns fiapos de nuvens, um penhasco que recorta, com contornos bem definidos, um céu de um azul colonizado pela luminosidade. Johanna Majken Poulsen, com uns caracóis que lhe caem sobre os ombros, não olha a câmara mas um ramo de flores acabadas de colher, de diferentes matizes e espécies (onde se destaca a sólja, o malmequer-dos-brejos, a flor nacional) de uma natureza que tanto pode ser agreste como benevolente.
Por todo o lado a erva, sempre a perder de vista, erva até nos telhados (aqui e acolá avista-se um homem com um corta-relva a tratar desses espaços verdes que se confundem com a paisagem de uma tonalidade mais viçosa) cobrindo a turfa (um bom isolamento contra o frio) e, numa terra já pobre, tão fortemente castigada pela chuva e fustigada pelo vento, não há mais de 6% de bour, de área cultivável.
- Num dos meus passeios por Skúvoy avistei um moleiro (skua em inglês e deriva de Skúvur, em feroês) e, dadas as suas dimensões, assustei-me. Quando contei o episódio a um habitante de Tórshavn, ele simplesmente perguntou-me por que razão não peguei num pedaço de madeira para o afugentar. Não consegui conter o riso. Como poderia fazê-lo se não há uma única árvore em todo o arquipélago?
Johanna Majken Poulsen permanece em silêncio enquanto escuto, numa mesa ao lado, na pequena esplanada virada para a água (o mar nunca está a mais de cinco quilómetros de distância), este relato de uma turista, tão contrastante com o sentimento convocado por aquela recordação de um tempo cada vez mais distante — nem mais uma palavra lhe sobe aos lábios e, denotando uma expressão ausente nuns olhos mudos, permite que outra lágrima tombe sobre o passeio limpo no momento em que Tórshavn desperta para um novo dia que se anuncia pleno de sol, mas de um sol amedrontado.
Os sons festivos começam a encher a atmosfera e antes de retomar a minha errância por Tórshavn é a minha vez, não de evocar uma imagem, mas palavras proferidas por Súsanna Sørensen uma hora antes.
- Por norma, ouvimos comentários de que as pessoas das Feroe são simpáticas e hospitaleiras mas também envergonhadas e reservadas até que se estabeleça o primeiro contacto, observara, mais confiante nas avaliações dos turistas do que nas suas impressões — e esta honestidade salta à vista mal se trocam meia dúzia de palavras com os residentes.
Outra característica da população, neste território tantas e tantas vezes envolto em neblina, é a resignação, mas uma resignação feita de diversão perante as súbitas mudanças de humor do clima.
- O tempo muda de cinco em cinco minutos, enfatiza Premnath Haldankar, um cozinheiro goês a viver há uns anos em Tórshavn.
Os habitantes gostam de lhe chamar “a terra do talvez”, tão diversificado pode ser o menu ao longo de um dia, ora com nevoeiro, ora com chuva, ora com neve, ora com sol — e este último, subindo no céu a meio da manhã, faz questão de contradizer, por estes dias de Julho, o que atrás acabo de escrever sobre as diferentes facetas climáticas.
A decisão das mulheres
Tórshavn deve a sua toponímia a Thor, o deus norueguês da guerra ou dos trovões, e ao porto (havn). Nos dias de hoje, a cidade abriga dois portos, divididos por uma estreita língua de terra, Tinganes, onde se localizava o primeiro parlamento, o ting, responsável, em cada Verão, pela aprovação de novas leis e resolução de conflitos. Com o passar dos tempos, Tórshavn tornou-se o porto comercial mais importante de todo o arquipélago, alguns armazéns foram construídos para guardar os produtos destinados à exportação e um forte (em ruínas mas com uma bela panorâmica sobre o porto) levantado para impedir que piratas e contrabandistas perturbassem o monopólio do comércio local, nas mãos da coroa dinamarquesa.
Tórshavn, tomada de assalto, começa a encher-se de vida à medida que o dia avança. Sem grande dificuldade, o viajante encontra a Gongin, uma das mais antigas artérias da cidade, com as suas casas de madeira e de múltiplas cores do século XIX bordejando as águas agora calmas do mar; não muito distante, uma área que concentra grande parte do legado histórico das Feroe, como o Munkastovan, provavelmente um edifício do século XV que acomodava monges, o Leigubúoin, construído no século seguinte e que servia de armazém para o rei (ambos sobreviveram ao incêndio que destruiu, em 1673, a maior parte dos antigos edifícios de Tinganes), o Reynargarour, uma antiga casa paroquial que permanece como um dos melhores exemplos da arquitectura feroesa do século XVII, o Myrkastovan (a casa escura), em tempos a casa da guarda, e, um pouco mais para sul mas a não mais de 100 metros, o Skansapakkhúsio, erguido em 1750 para armazenar artilharia.
Há barcos a chegar a todo o momento e a cidade, quase sempre vestida de um manto de indolência e mergulhada num silêncio tão íntimo, engole centenas de pessoas sorridentes — todos os caminhos marítimos parecem desaguar em Tórshavn. Meninas de rosto dócil, com as suas toucas, os seus vestidos compridos e coloridos, os seus aventais, lenços escorregando pelas costas; as mulheres, com os seus olhos muito claros, um cabelo da cor da palha, também em trajes de outras épocas; os homens com os seus coletes bordados, calças curtas e meias coloridas, de capacetes na cabeça, quais cópias pacíficas de antepassados vikings mais vocacionados para a turbulência, de cerveja na mão, contrariando os tempos em que as Feroe viviam sob o jugo de uma legislação severa que remonta a 1908.
As mulheres, cujo direito de voto apenas foi concedido nesse ano — e para o parlamento em 1915 —, tiveram um papel importante na criação da lei quando, excepcionalmente, em 1906, foram chamadas a votar em referendo a favor ou contra a venda livre de álcool. Furiosas com os seus maridos que, entre as diferentes campanhas de pesca de bacalhau, raramente se mantinham sóbrios, votaram contra — e a proibição somente foi abolida em 1993.
Os dias de folia
O murmúrio de vozes sobe de tom, os cais de Tinganes vestem-se de todas as cores, Tórshavn parece, subitamente, dominada por um frémito de energia. E todos, exceptuando as crianças, revelam disponibilidade para tornar ainda mais longo este dia que ameaça não ter fim, banhado por um sol do qual se sentem quase sempre órfãos mas que hoje se eterniza nos céus que se pintam de azul e rosa.
É a Ólavsøka, a festa de homenagem a São Olavo em que quase tudo é permitido, todos os estilos, com início marcado para a tarde de 28 de Julho (se bem que nos últimos anos um concerto a 27 marque o arranque dos festejos) e final para o dia seguinte. Muitos dos jovens (um terço da população tem menos de 20 anos) saltam de ilha em ilha, dormem em casas de amigos e familiares ou simplesmente se mantêm despertos. Mas é na capital, seguindo uma tradição ancestral, que quase tudo acontece. Ólavsøka significa “a vigília a São Olavo” e comemora a morte do rei norueguês Olaf II Haraldsson, a quem se credita ter levado o cristianismo para a Noruega (após uma vivência na cidade francesa de Roen) e que, segundo a história, terá morrido no dia 29 de Julho de 1030.
A data marca a reabertura das sessões parlamentares após o período de férias mas o feriado nacional, o mais importante das Feroe, abarca também manifestações de âmbito cultural, religioso e desportivo, recordando a velha tradição de um tempo imemorial em que todos os habitantes, da mais remota aldeia e da mais distante ilha, acorriam a Tórshavn para socializar, negociar e festejar.
Ao fim da noite, as chamas trémulas das lanternas dançam no rosto de milhares de homens e mulheres que cantam, em coro, na praça onde não cabe mais ninguém, em frente ao parlamento. E, quando tudo parece terminado, quando todos viram costas, preparando-se para o regresso a casa, uma balada saída das colunas ecoa nos céus e todos dão as mãos e voltam a dançar, como se aquele momento, verdadeiramente mágico, não fosse mais do que um exemplo do que acontece no dia-a-dia de um povo solidário.
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Na terra do talvez e da entreajuda há mais ovelhas do que pessoas