Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
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Carcassonne: Se numa noite sem lua um viajante

Carcassonne tornar-se-ia depois, durante algum tempo, cidade fronteiriça entre França e o Reino de Aragão, acabando por perder pouco a pouco a importância militar que chegou a deter. No início do século XIX, após um sono de séculos, a fortaleza achava-se a caminho da ruína e parecia condenada ao desmantelamento e ao destino de pedreira, mas a intervenção do historiador e arqueólogo Jean-Pierre Cros-Mayrevieille e o patrocínio de Prosper Merimée, então Inspector dos Monumentos Históricos, salvaram-na de um fim inglório.

Muito do que vemos hoje — o castelo, as muralhas, o casario mediterrânico e o urbanismo de raiz medieval — renasceu do declínio pela mão do arquitecto Eugène Viollet-le-Duc, conhecido também por outras reconstruções de espaços urbanos e edifícios religiosos medievais, como o Mont Saint-Michel e as igrejas de Notre-Dame de Paris e de Amiens, e pela referência e inspiração que foi para a nascente arte-nova e para alguns dos seus expoentes, como Victor Horta e Gaudi.

O trabalho de restauro de Carcassonne começou pelas cinturas de muralhas e decorreu desde meados do século até à morte de Viollet-le-Duc, em 1879. Posteriormente, o arquitecto Paul Boeswillwald continuou a tarefa de reabilitação das muralhas e do castelo, removendo também o casario espúrio adossado aos muramentos. A aparência final, a que figura nas vistas de postal, é a que o sistema defensivo tinha por volta do século XIII. É, justamente, essa configuração de cidadela medieval fortificada que legitima a classificação da UNESCO como Património da Humanidade e a sua valorização como baluarte patrimonial do Languedoc-Roussillon.

Um anti-itinerário

Deambular sem rumo pelas ruas estreitas da cidadela é um programa idóneo, mas não se deve tomá-lo como receita, sobretudo nunca como receita. Viajar ou “turistar” — por mais que teime o discurso de quem busca um lugar ao sol ou sentido, tão-só, para o que faz — não é profissão, nem actividade que tenha de fazer oficial prova de produtividade. Se o viajante se identifica com desgovernos, e quer escapar, tanto quanto possível, à turba turística, vale a prioridade à petit matin dos relógios madrugadores ou aos itinerários noctâmbulos, quando as ruas se abandonam ao silêncio e à bruma, e com um pouco de fortuna diante dele se podem atravessar fantasmas cátaros de archotes nas mãos e pele curtida pela luz do sul, em vielas a que nem a lua chega.

Suba-se a uma das torres circulares do castelo, para magicar sobre a dureza da vida de sitiados ou atarantar memória com a cena final de Vertigo, a história em que Hitchcock fez a bela Kim Novak morrer e viver duas vezes. Passemos uma hora no Museu da Inquisição, uma colectânea de recordações tenebrosas, e outro tanto tempo na maravilha românico-gótica de Saint-Nazaire, admirando os vitrais — como a sublime “Àrvore da Vida” —, alguns deles sobreviventes do século XIII. Permaneçamos, ainda, uns instantes à sombra das casas de timbre medieval da Rue Saint-Louis, ou de outra qualquer da cidadela, a recordar o canto da Sibila provençal, na excelsa voz da soprano Monserrat Figueras e na espantosa gravação que Jordi Savall dedicou à tragédia e ao reino cátaro.

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