Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
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Carcassonne: Se numa noite sem lua um viajante

Às vezes, tantas vezes, é preciso abandonar a viagem no meio da viagem, para que o estranho possa sobreviver como estranho, como mistério a preservar. Depois, em movimento fortuito, cirandar pelas muralhas eternamente indiferentes à passagem das gerações e recolher às austeras salas góticas da Porta de Narbonne. E, antes de partir, dizer, enfim, expirado o (anti-)itinerário: “C’est assez”. Se à cidadela de Carcassonne se quer proteger os seus enigmas, os seus abismos, que não se meta, pois, o nariz em tudo. Partiremos mais ricos: de dúvidas, de perplexidades e de cogitações. E nos olhos levaremos a saudável cegueira das imagens por ver.

Uma última subida à muralha sudeste, a que se debruça sobre o velho cemitério de Carcassonne, para um exercício de gratidão à memória das coisas transicionais da infância, aquelas que Hubert-Félix Thiéfaine cantou numa evocação da sua meninez num recanto desta França rural: “Que ne demeurent les automnes / Quand sonne l’heure de nos folies / J’ai comme un bourdon qui résonne / Au clocher de ma nostalgie / Les enfants cueillent des immortelles, / Des chrysanthèmes, des boutons d’or / Les deuils se ramassent à la pelle / En bas, dans la ruelle des morts / Dans la ruelle des morts / Dans la ruelle des morts…”.

A rota das abadias e castelos cátaros

Poderia a história da Europa ter sido (muito) diferente sem a heresia cátara? Se há uma resposta para a pergunta, ela só pode ser formulada no âmbito das especulações da chamada história alternativa. Fosse a resposta positiva e irrecusável a sua verosimilhança, haveria a considerar, ainda, que a experiência cátara tentou afirmar-se como um oásis de tolerância na Europa medieval, dominada então pelo dogmatismo e pela tentação absolutista de Roma, e que na velha Occitânia judeus, muçulmanos, cristãos bizantinos e outras gentes puderam beneficiar de liberdade religiosa, interrompida pela chegada da Inquisição.

Na origem da Inquisição Medieval esteve a necessidade de o poder católico responder ao desafio que as heresias representavam — e o Catarismo, que se desenvolveu durante os séculos XII e XIII nos territórios feudais da região do Languedoc, no sul de França, revelou-se a mais expressiva heresia desse tempo e a que mais directamente desencadeou a iniciativa papal da Inquisição. Formalmente criado em 1184, no Concílio de Verona, o tribunal foi reinstituído pelo Papa Gregório IX justamente como reacção às crenças cátaras que grassavam em Albi e noutras cidades do sul, como Narbonne e Carcassonne. A dissidência religiosa cátara manifestava-se em vários aspectos, interpretando de forma diferente as Escrituras e censurando a hierarquia católica romana pelo afastamento da simplicidade do Cristianismo primitivo.

Face à resistência dos Cátaros (oriunda da Bulgária, foi no Sul de França que a heresia congregou mais adeptos e mais tempo perdurou), o Papa Inocêncio III decidiu lançar a chamada Cruzada Albigense, com o apoio dos soberanos gauleses de então, a monarquia dos Capetos, que tinham interesse, também, em alargar os seus domínios para sul. Os senhores feudais do Languedoc, que eram vassalos do condado de Toulouse e da Coroa de Aragão, eram aliados das dioceses cátaras — Carcassonne, Albi, Narbonne, Toulouse, Agen e Cahors — e a sua derrota na cruzada representou o declínio da heresia, assistindo-se à condenação de muitos dos seus membros à fogueira.

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