É assim que atravessamos o Onyar e nos preparamos para percorrer dois milénios (mais coisa menos coisa) de história. Atravessamo-lo de olhos postos no cartão-postal da cidade, os edifícios coloridos (a única excepção é a Casa Masó, a casa natal do arquitecto Rafael Masó, a única visitável, que se pinta de branco e azul, mas que daqui não se vê) que são as margens do Onyar a fingir-se o Arno (Florença) — nas cores, apenas, um jogo cromático definido pelos artistas Enric Ansesa e Jaume Faixó na década de 1980, porque a arquitectura é do início do século XX e a volumetria uma justaposição naturalmente anárquica, misturando varandas e janelas e alguma roupa a secar fora — tutelados pela silhueta da catedral que se esgueira entre telhados.
Buscando ruelas
Em dia de Festa das Flores sentimo-nos perseguidos por “Saint Peter” invocado ad nauseam em tema dos Coldplay interpretado em loop por uma banda de música. Está à entrada da Ponte de Pedra (ou Ponte Isabel II), que no século XIX substituiu a ponte gótica original, mas continuamos a ouvi-la na Rambla de la Libertat, onde nos sentamos a refrescar-nos antes de nos perdermos (voluntariamente) por ruas e ruelas da zona histórica de Girona. A cidade oferece-se a esse callejar sem rumo, seguindo a intuição, que nos leva pela mão no dédalo do Call (a antiga judiaria), a ajoelhar diante da catedral e à entrada dos banhos árabes (que são românicos) — e aqui a muralha é decoração de jardins.
Mas estamos a adiantar-nos. A Rambla da Libertat é a fronteira com a Girona mais profundamente medieval — e avançando um pouco mais na rambla depressa passamos por edifícios com rés-do-chão rasgados em arcadas sucessivas e desalinhadas onde se alinham restaurantes e cafés, cujas esplanadas transbordam na rambla abrigada por copas frondosas. Estes estão do lado de “dentro”, que é como quem diz, oposto ao rio; do lado do rio, invisível, erguem-se edifícios do início do século XX, entre elas alguns exemplares do noucentisme, o “novecentismo”.
Estamos longe de qualquer academicismo quando nos metemos pelas arcadas buscando as ruelas que desenham o, imaginamos, miolo pétreo de Girona antiga (e não é um abuso de imaginação, já que Girona tem um dos conjuntos medievais mais bem preservados da Europa). Sim, as ruas são estreitas, os passos ecoam na pedra que está no chão e nas paredes que podem guardar rés-do-chão sem janelas ou livrarias, lojas de discos, bares e cafés de bairro, restaurantes. Cruzamos pórticos majestosos para pátios interiores de grandes casas feitas museus, passamos cruzamentos de ruas que parecem eles próprios pátios, tal a exiguidade, subimos (e descemos) ruas inclinadas cujo fim se perde para lá de curvas, trepamos escadarias tortas e outras imponentes, num sobe e desce sem direcção.
É assim que nos surge a Pujada (subida) de San Domènec que parece a súmula de tudo isto num cenário construído para filme, de tão perfeita que é aquela subida abraçada por pedra trabalhada em palácios e coroada por uma igreja. Temos a ruela íngreme de calçada que se transforma em degraus e se divide: em frente segue em escadaria até à fachada barroca e neoclássica da igreja de San Martí Sacosta, à esquerda passa sob a “ponte” seiscentista que une os dois edifícios que compõem o Palácio Agullana e continua a subir entre muros e curvas — a “praceta” que se forma nesta confluência funciona como uma câmara do tempo, congelado e idealizado em pedra (veja-se ainda um palácio renascentista), porém com o burburinho actual: nas escadarias sentam-se grupos de jovens, no Le Bistrot Girona continua a sentar-se à mesa — e, descobriremos, a ler-se: Javier Cercas dá início à acção do seu Soldados de Salamina precisamente neste restaurante, onde se encontrava, por exemplo, com Roberto Bolaño quando ele aqui viveu.