Nesse dia, e desde 1923, os homens são presenteados com um livro, evocando o desaparecimento de autores de grandes clássicos, como William Shakespeare ou Miguel de Cervantes, tanto um como outro falecidos no dia 23 de Abril (na Catalunha a UNESCO encontrou inspiração para criar o Dia Mundial do Livro). Na verdade, embora tendo desaparecido ambos em 1616, a data da morte do escritor espanhol ocorreu dez dias antes, uma vez que Espanha se guiava pelo calendário gregoriano, enquanto Inglaterra o fazia pelo calendário juliano.
“E, levantando-se, deixou de comer, e tirou a cobertura da primeira imagem, que era a de São Jorge a cavalo, com uma serpente enroscada aos pés, e atravessada pela boca com a lança do santo. A imagem toda parecia um relicário de ouro, como se costuma dizer. Vendo-a, disse D. Quixote:
Este cavaleiro foi um dos melhores andantes que teve a milícia divina: chamou-se D. S. Jorge, e foi, além disso, defensor de donzelas.”
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha e tantos outros livros, a maior parte deles escritos em castelhano ou em catalão, encontram-se por todo o lado, na Rambla, na Rambla de Catalunya, no Passeig de Gracia, estimando-se que o dia de Sant Jordi proporcione vendas na ordem dos 20 milhões de euros, um facto que, não sendo decisivo, terá contribuído para Barcelona integrar a lista da UNESCO das cidades literárias e a rede das cidades criativas, como Edimburgo, Cracóvia, Montevideu, Dublin, Praga ou Ljubljana.
Sardana e a identidade
Barcelona vive, de facto, um momento especial (não é por acaso que o Ayuntamiento abre as suas portas ao público para visitas, o que apenas acontece três dias durante o ano) mas o dia de Sant Jordi não é considerado feriado — as lojas estão abertas, todos têm de trabalhar mas não há quem não arranje pelo menos uns minutos para comprar uma rosa ou um livro. Quando a tarde avança, são muitos os que rumam à praça Sant Jaume para presenciar a sardana, a tradicional dança catalã, símbolo de orgulho e identidade nacional — e não era por acaso que o ditador Franco via os catalães como um povo arrogante e insolente, proibindo, entre outras coisas, a língua e, entre outras tradições, a sardana (forma-se um círculo que vai aumentando, todos de mãos dadas e braços erguidos, dançando com passos meticulosos e precisos sob a orientação de um líder e, quando a roda se torna demasiado grande, formam-se outras), que capta de forma notável o espírito catalão.
Ana Hernandez Martin sente necessidade de dizer algo, mesmo que não seja essa a sua vontade.
“É um dia muito popular na Catalunha. Para nós, catalães é como o dia de São Valentim.”
A noite acaba de tombar sobre a cidade quando chego ao quarto do hotel. Da rua chegam vozes, as luzes da cidade vão bruxeleando, como num teatro onde as cortinas nunca se fecham. Percorro, por momentos, as páginas de Manual da Escuridão (D. Quixote), de Enrique de Hériz, o grande escritor de Barcelona. “Há qualquer coisa que o acorda em plena noite. Uma angústia, uma necessidade premente de ordem. Está tudo desordenado. Não só a casa, cuja manutenção descurou nestes últimos dias. A vida, também. A luz, o tempo, tudo provém de um lugar diferente do esperado. E, como Victor tardará pouco a verificar, o lugar é tudo. O ponto de partida. Estou aqui e quero chegar ali. Tenho isto pela frente e aquilo atrás. Isto vem antes, aquilo depois.”