Cidade debaixo de outra
Em Akko começou a jornada terrestre do veneziano Marco Polo a caminho da Pérsia — e depois daí, sempre cruzando fronteiras que não existiam, até à longínqua China, a crer nos relatos do Livro das Maravilhas do Mundo. O império otomano estava nesses tempos prestes a começar a sua expansão e é perfeitamente verosímil que o porto de Akko (que se conheceu também por Ptolomais e por São João de Acre, entre outras designações, bíblicas e medievais) não ostentasse, então, qualquer semelhança com a urbe deixada pelos turcos e herdada pelos árabes que por ali havia e cuja descendência acabaria por ver a opressão otomana substituída pelo eufemístico e funesto “protectorado britânico”. Por volta dos finais do século XIII já ali se havia materializado a obra dos cruzados. Era crucial aquele desenvolvimento urbano: Akko fez-se capital do reino fundado no Médio Oriente, em terras que então davam pelo nome de Palestina, pelos que haviam decidido, na Europa medieval, meter-se a libertar a Terra Santa dos seus próprios habitantes. O latino reino não duraria dois séculos — ou menos, ainda, se contarmos com a reconquista de Saladino.
Da aventura belicista das cruzadas ficou, portanto, um punhado de sinais materiais, arquitectónicos, urbanísticos — remanescentes da cidade de pura matriz medieval que Marco Polo visitou em 1271 —, sobre os quais os otomanos viriam a sobrepor as suas edificações. É um labirinto de muralhas, arcos, salas e túneis (o maior tem mais de trezentos metros), que podemos admirar hoje, tudo iluminado por uma luz fantasmagórica, tudo apenas uma pequena parte da cidade construída pelos cruzados, que jaz agora sepultada sob a urbe otomana. Há ainda muito por descobrir, por ser revelado debaixo da actual Akko, mas, dizem os arqueólogos e outros entendedores em adequadas matérias, que assim mesmo, inumados, deverão ficar muitos desses vestígios: insistir em mais escavações pode fazer perigar a cidade contemporânea.
Todo o percurso por essa herança meio subterrânea é de forma geral bastante impressivo, mas os viajantes sensíveis à indizível atmosfera de certos espaços arquitectónicos emudecerão na chamada Sala dos Pilares e recordar-se-ão, provavelmente, da famosa cisterna portuguesa, enterrada no subsolo da velha cidade de Mazagão, a El-Jadida de hoje, em Marrocos. Consta que um mais ou menos célebre escritor e jornalista inglês, James Silk Buckingham (conhecido, pelo menos, por ter sido expulso da Índia por publicar no seu Calcutta Journal críticas ao poder colonial) passou por Akko há precisamente um século, em 1816, e deixou apaixonadas descrições do que viu no volume Travels among the Arab tribes inhabiting the countries east of Syria and Palestine.
Heranças otomanas
A configuração otomana do que é hoje centro histórico, que espontaneamente faz evocar o figurino de tantos povoados da região — Jaffa, Jerusalém e Belém, em Israel, Nablus e Hebron, na Cisjordânia, Jerash, a norte de Amã —, o casario interpolado por ruas estreitas encimadas por arcos, a cidadela junto ao porto, os banhos turcos, viriam mais tarde durante o domínio otomano. A par dos vestígios da capital do antigo reino dos cruzados, esta herança otomana pesou também fortemente nos critérios da UNESCO para a eleição de Akko como Património Mundial. Traduzindo: esta pequena cidade do Norte de Israel é um notável exemplo de uma povoação otomana muralhada, com quase todos os seus componentes em bom estado de conservação. Frequentemente são anunciadas novas descobertas e uma das últimas estruturas a ser restaurada foi um complexo de banhos turcos, actualmente aberto ao público, mas com critérios assaz selectivos, o que parece confirmar alguns temores da população residente no centro histórico quanto a uma gentrificação do espaço e quanto ao risco de desenvolvimento de uma especulação imobiliária que acabe por a expulsar para a periferia, como tem acontecido um pouco por todo o mundo por causa do “progresso” do turismo. Muito provavelmente, esta Akko estará já a caminho de se transfigurar noutra coisa e é possível que daqui a uma dezena de anos a cidade já tenha perdido esta pátina sedutora e a sua composição social sido objecto de reconfiguração. Será então outro burgo — transformado em coqueluche turística como a sua congénere Jaffa, à beira de Telavive —, reivindicando ainda a mesma história, mas com uma identidade marcada por mudanças muito rápidas e, sobretudo, mudanças que poderão ter excluído das decisões os seus habitantes mais antigos.