Fugas - Viagens

De um tempo otomano que aqui ficou

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

Akko ou Acre. Ao longo dos séculos houve ainda outros nomes para aquela que é uma das cidades mais antigas da orla mediterrânica e do mundo. O centro histórico acolhe uma antiga comunidade árabe e o velho porto assistiu à passagem de muitos cruzados. Até de Marco Polo.

São sete e meia da manhã, o sol já bate forte nas paragens do Médio Oriente e certamente o dia não será muito diferente dos outros para o grande e diverso mar de gente que habita a região. Na estação de HaShalom, em Telavive, essa diversidade salta à vista, árabes e israelitas, e mais outra gente de insuspeitadas proveniências, à espera do comboio — e mesmo entre cada uma das comunidades que assim adivinhamos é inegável a variedade que os patrimónios genéticos, os genótipos, plasmam nos fenótipos.

É, pelo menos, o que o viajante, já bem desperto por todo o aparato militar e policial e controlos electrónicos que teve que atravessar para chegar à plataforma, se põe a pensar, enquanto espera pelo comboio número 104, que há-de chegar daí a uns minutos. A composição, formada por meia-dúzia de modernas carruagens azuis, seguirá depois rumo ao Norte, até Nahariya, a última estação desta linha, uma pequena cidade situada já muito perto da fronteira com o Líbano.

Bastam uma ou duas viagens em transportes públicos israelitas para nos habituarmos à presença de jovens soldados armados, cada um deles levando a automática apontada para baixo e com o carregador retirado, como estipula o regulamento. No banco da frente viajam duas jovens, uniformizadas. Têm cabelos negros e olhos escuros como azeitonas pretas — e com outra roupa passariam bem por árabes. Na Cisjordânia vêem-se árabes cristãs ou muçulmanas que, se vestissem a farda do exército israelita, não ficariam muito diferentes destas moçoilas.

Partimos de HaShalom à hora prevista, 7h51. Mais adiante, quando deixamos a estação de Binyamina, às 8h30, depois de uma breve paragem, uma das moças deixa escapar um sorriso. Mas são pouco conversadoras e respondem de forma lacónica às perguntas sobre Akko e Haifa. Remota parece, portanto, a possibilidade de confirmar uma recente disposição militar que permite aos soldados em licença de fim-de-semana e vestidos à civil levarem consigo a arma para casa. Acabam por sair as duas numa das estações de Haifa, HaShmona, às 9h, e há um pormenor a que é difícil deixar de prestar atenção: são ambas de estatura baixa e até um tudo-nada franzinas, e por um momento, quando recolhem a mochila e procuram manter a metralhadora na posição regulamentar, a arma parece maior do que elas. Despedem-se com uma expressão quase infantil, mais tímida do que protocolar. São, afinal, duas adolescentes — o serviço militar israelita começa cedo, e obrigatoriamente, aos dezassete anos, tanto para rapazes como para raparigas.

A linha segue a par da larga baía de Haifa e avança para norte. Da janela vê-se ao longe, num relance, o aglomerado de torres modernas, alguns arranha-céus de linhas futuristas e reflexos metálicos, as estruturas portuárias daquela que é a terceira maior cidade israelita e o Mediterrâneo, tudo a estender-se aos pés do monte Carmelo. É mais ou menos o mesmo cenário que se insinua, ou melhor, que se adivinha, em miniatura, do topo das muralhas da cidadela otomana de Akko. O comboio pára ainda em mais duas estações da Galileia antes de chegar, exactamente às 9h24, à cidade visitada por Marco Polo na segunda metade do século XIII. Pontual, como outros exemplos do sistema de transportes israelitas, cuja eficiência seria a última coisa que o viajante se lembraria de pôr em causa.

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