Lição anatómica
Após essa nota de contemporaneidade, o percurso expositivo do museu retoma a ordem natural das coisas para começar pelo princípio — sempre com contextualização em Português e Inglês, tanto nos painéis escritos como nos ecrãs interactivos e códigos QR. O primeiro capítulo da história dá assim a conhecer a anatomia do calçado numa sala que reproduz toda a cadeia produtiva de um mesmo modelo de sapato, desde a sua idealização em papel até à fase de acabamentos. Nove máquinas fabris ajudam a visualizar o processo, retiradas às 54 que integram o fundo do museu, e 77 ferramentas complementam a tarefa, entre as 1500 da colecção.
(Des)contruído o sapato em moldes, gáspeas, solas e outros componentes, segue-se então para a viagem cronológica que explora os seus usos e costumes desde a pré-história até à actualidade e esse “túnel do tempo” percorre-se a passo rápido, evitando exaustivos compêndios sobre períodos de que sobreviveram poucos modelos. Suzana Menezes realça, aliás, que a predominância das réplicas entre os 500 sapatos que o museu tem expostos e os 6500 que guarda em reserva se deve precisamente ao facto de que “há poucos originais bem preservados e quem os tem não os quer vender”.
Esse problema deixa de colocar-se, no entanto, quando chegamos às últimas décadas do século XX, cuja produção é retratada em quantidade e com generosidade — o que não será uma redundância considerando que essa parte da colecção resulta de diversas doações por empresas e criadores de São João da Madeira. Assim se justifica a disposição farta das montras com os meios-tacões e peles perfuradas dos anos 1980, com as socas e plataformas hippies dos anos 1970, com as sapatilhas Sanjo que já em 1960 começavam a convencer os jovens de quanto o que é nacional é efectivamente bom.
Galeria de “Notáveis”
Na insuspeitavelmente ampla Torre da Oliva, o Museu do Calçado também consegue ter espaço para uma sala de serviço educativo, um recanto lúdico para crianças e um centro de documentação especializada. Estas valências estão dispostas em torno da última sala do circuito, que, reservada para o calçado enquanto objet d’art, procura estabelecer um contraste com o produto histórico, prático e factual que se dá conhecer nos espaços anteriores.
“Queríamos terminar a visita com uma visão mais disruptiva e inovadora sobre este objecto do quotidiano”, justifica Suzana Menezes. A exposição reúne assim várias obras de artistas como António Saint Silvestre e Agnès Baillond, que, antes mesmo de convidados a integrarem a colecção do Museu, já haviam assinado peças evocando ou reinterpretando calçado.
É no penúltimo segmento do circuito, contudo, que melhor se percebe quão injusto poderá ser desfazermo-nos de um par de sapatos que, mais do que a meros lugares, nos levou a experiências. Para pôr fim a esse desdém, o museu criou, portanto, uma galeria em que reúne jovens e velhos “Notáveis”: na lista dos primeiros, sempre novos e a estrear, inclui calçado de marcas como a Melissa, Cubanas e Caterpillar, e modelos de designers como Miguel Vieira, Egídio Alves, Katty Xiomara, Max Azria, Agatha Ruiz de la Prada e Noritaka Tatehana; no rol dos segundos, sempre com sinais já bem evidentes de uso, apresenta sapatos doados por dezenas de figuras públicas portuguesas, que dessa forma partilham com o público os enredos em que lhes gastaram as solas.