Logo que as sombras nocturnas avançam, as esplanadas junto ao canal ganham alma e, aos poucos, o lanço de escadas que desagua na água enche-se de grupos de jovens, de casais de namorados que vão conversando e rindo por entre goles de cerveja. Mal o dia nasce, o ambiente festivo dá lugar a uma atmosfera em que pouco mais se escuta do que raros e fracos sons, respeitosa, como a que se pede a quem se passeia, sem pressas, por um museu.
Aarhus, uma das capitais europeias da cultura este ano, é um museu. Mas é, mais em 2017 do que no passado, não apenas um museu, mas uma cidade aberta, tolerante, que defende a arte, que respeita as tradições, que enfatiza e molda os novos conceitos da gastronomia suportados pelas ideias dos mais velhos, com um coração que pulsa nas suas ruas, com uma alma que promete transformá-la não em mais uma cidade dinamarquesa, dos cafés e dos museus, mas numa cidade que vale a pena visitar e admirar, como quem passa, pausadamente, os olhos por um conto do vizinho (de Ostende) Hans Christian Andersen.
É esse o ar que se respira, de museu, quando, caminhando sob o firmamento pálido, parto à descoberta da Den Gamle By, a cidade antiga, um museu ao ar livre feito de casas que numa época mais distante repousavam sobre a terra de outros lugares próximos da cidade dinamarquesa. Como numa construção de legos, todas elas, algumas com uma vida de mais de quatro séculos, parecem encaixar na perfeição e contribuem para tornar mais harmoniosas e mais belas as artérias onde, aqui e acolá, me cruzo com um artesão que teimosamente dá continuidade a técnicas manuais que são de um outro tempo mas tão do agrado pelo menos dos mais pequenos.
Continuo a caminhar por Den Gamle By e aprecio, mais do que tudo, essa felicidade, menos efémera do que a dos adultos, a felicidade dos miúdos, observando, de forma afectuosa, o labor de artistas, dessas técnicas perdidas, de fabricantes de velas, de agulhas, de sabão, e surpreendidos com um mundo que não esperavam encontrar a não ser num supermercado, entre prateleiras ordenadas que tudo lhes oferecem, a eles e aos pais.
Um dia antes da cerimónia de abertura, já na próxima sexta-feira, Aarhus, seguindo a tendência do país de tornar mais bela a vida das crianças, convida os mais pequenos de toda região central da Dinamarca, representando 19 municípios, a assistir a uma jornada que tem tanto de maravilhosa como de divertida na procura dos lugares e das paisagens mágicas e especiais, um projecto denominado Land of Wishes, a terra ou um mundo de desejos que funcionará com uma espécie de cortina que se abre para o início das festividades mas também para o futuro, imaginando esses dias que estão para chegar de uma forma criativa e tendo como pano de fundo uma dança e uma música únicas, da autoria dos conceituados intérpretes Alberte Winding e Jan Rørdam e inspirada nos desejos e nas esperanças das crianças para dar as boas-vindas a um ano que se prevê verdadeiramento mágico para a cidade.
A lista de acontecimentos é extensa, não cabe neste espaço, mas alguns não podem, de forma alguma, ser ignorados. Aarhus fervilha de vida, é um mar de cultura, nada nem ninguém a pode deter em 2017, quase levando os mais pequenos e os pais a ignorarem os lugares mais míticos da Den Gamle By, por onde continuo a desfrutar da minha errância, da minha quietude, da minha melancolia, porque o lugar a isso mesmo nos conduz, calmamente, tornado-nos melancólicos, exacerbando essa saudade tão portuguesa, essa nostalgia que nos atormenta quando olhamos esse passado feito de alguns objectos que aprendemos a admirar e, não raras vezes, a ver como funcionavam sem perceber a sua mecânica. Com que espanto perscruto o interior da farmácia velhinha de tantos séculos, com que êxtase, maior ainda do que a coleccionador de artefactos, pouso os meus olhos naqueles frascos de cerâmica, de um ano que não me atrevo a perguntar, como um ignorante incapaz de confrontar tanta sabedoria. Den Gamle By pede-me, a mim e a todos, algum tempo, a sua harmonia, as suas casas habitando aquele espaço como se nenhum outro conhecessem, carecem de companhia, motivam a reflexão, obrigam a pensar na evolução dos tempos, mais ainda na Dinamarca, onde o design representa, nos dias de hoje, uma inovação sem limites e sem fronteiras — quando visito, mais ou menos demoradamente, algumas destas casas que por vezes me parecem olhar com tristeza por terem abandonado o seu habitat natural, tenho mais facilidade em compreender a evolução da decoração de interiores no país, o próprio desenvolvimento do país em áreas tão distintas, em parte saudosista desses tempos que o continuam a cativar mas de olhos bem postos no futuro.