Mais umas centenas de metros de caminhada e avistamos no topo de uma colina uma série de minaretes em branco mármore e douradas cúpulas entre palmeiras. É a jóia da coroa da arquitectura religiosa de Perak, a Masjid Ubudiah. A mesquita — uma das mais bonitas da Malásia —, a fazer cem anos agora, foi desenhada pelo arquitecto britânico Arthur Benison Hubback, o mesmo que concebeu os projectos das estações ferroviárias de Kuala Lumpur e de Ipoh, e de mais uns quantos edifícios públicos de Kuala Kangsar.
As liturgias do paladar
Kuala Kangsar vive à flor do rio. A poucos metros das águas, as gentes sentam-se à mesa numa espécie de food court, a Medan Selera, e degustam as delicadas especialidades gastronómicas de Perak, como a laksa ou o lemak ikan patin, um peixe de águas fluviais cozinhado com leite de coco e ervas aromáticas. Por vezes, um dólar chega e sobra, por obra da cotação do ringgit, a moeda da Malásia, e da barateza destas terras orientais; e pouco mais há que retirar da bolsa se a refeição se fizer acompanhar por um sumo natural ou um batido de frutas, beberagem que se vai encomendar a outra banca e a outro sorriso aberto emoldurado pelo hijab. Por aqui há menos gente a falar inglês, ao contrário do que acontece em Kuala Lumpur, Malaca ou Georgetown, mas não se acha a vida atrapalhada com tais pormenores; os gestos e a boa vontade dão conta do recado e ajudam a desembaraçar os novelos da (in)comunicação.
Mais além, a pouquíssimos minutos a pé e também juntinho ao rio, outras bancas de comida de rua, desta feita chinesa, atraem dezenas de barulhentos comensais. Os chineses representam cerca de 20% da população de Perak e vieram sobretudo nos tempos áureos da mineração do estanho, quando Perak era uma das regiões mais prósperas da Malásia. Agora, falhada a hipótese da produção de gadgets high-tech (as fábricas instaladas nos anos 1980, investimento de Taiwan, mudaram-se logo para a China), Perak vê no desenvolvimento do ecoturismo uma promessa luminosa. E não sem fundamento, dado o potencial para competir com as mais conhecidas e prestigiadas atracções da Malásia nesse domínio, o parque Taman Negara e as Cameron Highlands (ver caixa).
Estas food courts podem ser também espaços propícios à filosofia ou, pelo menos, a uma sociologia de ocasião. As artes culinárias são na Malásia, porventura, a melhor expressão do diálogo intercultural — em que convergem as mil vozes do cadinho local, dos bumiputra (autóctones malaios) aos indianos tamil, dos chineses aos sikhs imigrados do Punjab. Com imensas variações locais, até para uma mesma receita, elas articulam, com a moderação da valorização recíproca, elementos de distinta proveniência — como o exemplo, entre tantos possíveis, da nonya, receita sino-malaia. Diríamos, até, que em cada invenção, que é uma parte do todo, está o todo. E vice-versa. Certamente o princípio aplica-se mesmo a outras dimensões de uma sociedade tão plural como é a da Malásia. Em cada combinação de sabores — ah!, o rojak, essa estranha mistura de fruta com piri-piri... — podemos pensar no velho Pascal e no seu entendimento de “todas as coisas sendo causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas sustidas por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes...”. Não há quem suspeite ser plausível que a introdução do picante no rojak se possa dever aos portugueses quinhentistas?